São 22h30 do dia 1 de Julho de 1964. Com 6710 km percorridos desde Lisboa,
Vasco Callixto acaba de chegar ao Cabo Norte
, ao volante de um Opel Kadett, matrícula CL-74-03. No automóvel estão
também a mulher, Maria Luísa, e os dois filhos, António Carlos e José
Carlos Callixto. Pela primeira vez, um carro de matrícula portuguesa
chegou ao ponto mais setentrional do continente europeu.
Se o mundo de há 60 anos fosse como o de hoje ... se os
media fizessem directos ... esta poderia ter sido uma das muitas
notícias daquele final do primeiro dia de julho de 1964. Mas o mundo pouco
tinha de semelhante ao actual. A velha Europa tinha saído do caos há menos de
20 anos. A Escandinávia era uma região remota e distante; na Noruega, de Oslo
para norte não havia estradas alcatroadas. Por cá, Salazar ainda não tinha
caído da cadeira. A nossa juventude partia para o inferno das matas africanas,
ou trocava a sorte pela
chança, pelas vielas da esperança. Na Amadora,
mais de um mês antes de completar 11 anitos ... um
puto franzino tinha
terminado o 1º ano do Liceu (hoje diz-se o 5º ano do básico) ... mas já tinha
ido a Paris, a Berlim, a Copenhague ... "Pelas Estradas da Europa" que o pai,
Vasco Callixto, começara a calcorrear três anos antes.
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Eram assim as estradas na Noruega, em 1964
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Pois é ... 47 anos antes de começar a escrever a retrospectiva das suas
memórias "
Por fragas e pragas..." ... o tal
puto franzino já escrevia os seus Diários. Pelo caminho,
nas viagens com os pais e irmão ... fazia até os seus relatos "radiofónicos"
do que iam avançando e vendo, em directo ... apesar de esses "relatos" serem
apenas para consumo interno dos quatro viajantes. A 12 de junho desse muito
longínquo ano de 1964 partíramos de Lisboa, no extremo ocidental da Europa,
rumo ao extremo setentrional, acima dos 71º de latitude norte!
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Ao longo do mês de junho fomos subindo a Noruega,
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passando o Círculo Árctico no dia 26.06.1964
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O tal puto franzino com 10 anitos ... além dos relatos
"radiofónicos" já escrevia os seus "Diários de Viagem" 👦
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Há 60 anos, chegar ao
Cabo Norte de automóvel foi, sem dúvida, uma
aventura. Estradas alcatroadas ... tínhamo-las deixado pouco depois de Oslo. A
"Rota do Ártico" foram mais de 2000 km de estradas de
macadam, como
então se chamavam, por vezes sob chuva torrencial, com lama, por vezes com
neve, com paisagens grandiosas ... e com muitas, muitas travessias marítimas,
cruzando os fiordes; o record foram quatro travessias marítimas no mesmo dia,
em menos de 300 km!
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Naqueles tempos ... era assim que o carro entrava nos ferrys da maioria das muitas ligações marítimas...
⇦ Lapónia... como que nos sentíamos num outro mundo...
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01.07.1964, 20h10 - Chegada a Honningsvåg, na ilha Magerøya ...
4 horas de barco desde Russenes E sim, o puto à esquerda
na foto, com quase 11 anitos ... é o autor destas linhas ... com quase
71 anos... 😨
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Há já alguns dias que, àquelas latitudes, já não havia noite ... e ao 20º dia
de viagem, 1 de julho de 1964, terminávamos a "Rota do Ártico", a grande
corrida para o norte. Apesar da tenra idade, lembro-me bem da sensação de
estarmos ali, onde a terra acaba e começa o oceano árctico, e de vivermos, em
toda a sua plenitude, o fascinante espectáculo de ver o Sol descer no mar ...
para voltar a subir sobre a linha do horizonte. Estávamos a 2000 km do Polo
Norte ... mais perto do que de Oslo.
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Cabo Norte, 01.07.1964, 23h50 ... "e o Sol lá continuava, como se fosse meio-dia"
(do meu "Diário de Viagem")
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Extasiados, por ali deambulámos algum tempo. O meu pai tinha 39 anos e a minha
mãe 41 ... e o jovem casal português, com os dois filhos de 10 e 16 anos, teve
honras de notícia e fotografia de primeira página no jornal norueguês daquela
remota região ártica.
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Daqui para norte ... só o gélido mar Árctico...
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O
Cabo Norte é um majestoso promontório apontado ao oceano árctico, mas
há 60 anos o local pouco tinha a ver com o actual. Em 1964, um pequeno e
modesto restaurante constituía o único abrigo para os poucos visitantes. Um
altivo poste metálico encimado por um «N», esse sei que ainda lá está,
indicando a direcção do Polo Norte. De resto, um monumento que evoca a visita
ao local do rei Oscar II e um busto do rei Luís Filipe de França, eram então
as únicas silhuetas naquele planalto, 307m acima do nível do mar.
Deixámos o
Cabo Norte quase às duas da manhã, a caminho de Honningsvåg.
A total claridade fazia-nos esquecer que era de madrugada. No trajeto, só a
tranquilidade das renas, que dormiam na tundra, nos lembrava que também era
hora de descansar. E às três da tarde do dia seguinte deixaríamos o porto de
Honningsvåg, rumo a Russenes. Tinha começado a viagem de regresso, pela
Finlândia e, depois, cruzando o golfo de Bótnia e pela Suécia.
Aquilo que nas primeiras viagens europeias do meu pai não passara de uma
hipotética ideia, talvez um sonho, tinha sido uma realidade. Tínhamos ido de
automóvel de Lisboa ao Cabo Norte! Hoje, passados que são 60 anos ... volta a
parecer ter sido um sonho!
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O mapa que, desenhado pelo mentor da viagem, andou sempre numa
das janelas laterais do Opel Kadett
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O livro desta épica "Viagem às Terras do Sol da Meia-Noite", editado por meu pai dois anos depois e reeditado em 2014,
ainda hoje é procurado por coleccionadores e amantes das crónicas
de viagem
⇽E algumas das muitas notícias posteriores
na imprensa portuguesa
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Não mais voltei ao
Cabo Norte. Sonhei com essa viagem, principalmente
na época em que tínhamos uma
autocaravana
... mas o Tempo e os "
ventos" do Universo não o ditaram. O Mundo de hoje não é o Mundo de há 60 anos (e
não estou a opinar se é "melhor" ou "pior") ... e os 39 anos que o meu pai
tinha na altura já lá vão há mais de três décadas. Já nem os meus filhos têm
39 anos ... daqui a pouco mais de 20 anos quem os terão são os meus netos ...
se ainda houver Mundo ... se o autodenominado
sapiens sapiens não tiver
acabado com ele. Mas, quem sabe ... o Sonho comanda a Vida...
☯️♾️ … 𝑺𝑰𝑪 𝑴𝑽𝑵𝑫𝑽𝑺 𝑪𝑹𝑬𝑨𝑻𝑽𝑺 𝑬𝑺𝑻 … ♾️☯️
2 comentários:
Vivências dessas fizeram de ti o homem aventureiro em que te tornaste. Que maravilha de experiência... Uns amigos nossos fizeram há pouco essa viagem , acredito que na preparação tenha consultado o livro do teu pai que o tem autografado.
Viagem de um autêntico e corajoso explorador, acompanhado pela família. Fascinante!
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