terça-feira, 6 de agosto de 2019

Autonomia em Vale de Espinho ... ou uma melodia entre avô e netas

Entre o Vale da Maria e a Pelada,
Vale de Espinho, 5.Agosto.2019, 21h20
São três da manhã; acabei de ouvir o sino de Vale de Espinho. Pela abertura da tenda vejo as estrelas no firmamento. Levanto-me. Lá em baixo estão as luzes da aldeia e os "pirilampos" vermelhos das eólicas da serra do Homem de Pedra. As minhas netas dormem. Eu já dormi, talvez ainda volte a dormir, quem sabe. A mais velha, nos seus 11 anos, de vez em quando fala, mas não se percebem aquelas palavras em língua desconhecida. A mais nova, 9 anitos, é silenciosa mas mais reboliça. Na viagem astral dos seus sonhos, o que lhes terá despertado mais os sentidos? A viagem no tempo de que lhes falei, por simplesmente olharmos as estrelas? O cantar dos ralos agora adormecidos? O piar da coruja? Ou a raposa que imaginavam ser do tamanho de um lobo e lhes declarei ser inofensiva? Daqui a 4 horas nasce o Sol, antes dele havemos de ver o lento acordar de um novo dia, vindo lá das bandas do meu Xalmas, das bandas da nascente do rio sagrado, o Côa. A casa de Vale de Espinho está apenas a 2 km. Passava das seis da tarde quando descemos os três até ao rio, para depois subirmos o Vale da Maria e o Cabeço da Pelada. Amanhã, ou melhor, daqui a umas horas, desceremos ao Moinho do Rato e voltamos ao ninho. Caminhada curta, "aventura" pequena ... mas esta é já uma das autonomias mais maravilhosas que vivi ... e que certamente ficará na memória destas duas cabecinhas que continuam a dormir, alheias ao avançar da madrugada e à subtil movimentação aparente das constelações...

Escrevi estas palavras, soltas, às três da manhã, num precoce despertar dos mágicos que depois deu lugar a novo sono, ali, entre o Vale da Maria e o Cabeço da Pelada. De um lado a Catarina, do outro a Sofia, os três na tendazita que, nestas "minhas" terras de Vale de Espinho, também já me viu dormir com a Lua e as estrelas, a solo, há 3 anos, no cimo da Ladeira Grande, como também há 4 anos, a dois, com a minha estrela arraiana, no "santuário" das Fontes Lares.
À porta de casa ... Caminho de Santiago
Agora, enquanto o tempo, implacável no seu caminhar, desenrola o fio da vida, assisto ao crescimento dos filhos dos filhos que já vi crescer. Tento transmitir-lhes o que sou, quem sou. Tento transmitir-lhes que a vida é para ser vivida ... e que para isso precisamos de sonhar. Nem todos os dias são de Sol, mas só podemos ver o arco íris se aceitarmos a chuva, colhendo o que semeamos. Tento partilhar e semear experiência, ensinamentos, sonhos ... Amor.

Estamos com as duas netas em Vale de Espinho há uma semana. A três, já as tinha levado às águas do Côa, no mágico sítio do Moinho do Rato e na nova praia fluvial da Ponte Nova. Depois, no sábado, chegaram os pais delas e o irmão, o benjamim da família, menos de 2 anos ainda. A Sofia é a que parece ter recebido mais "inspiração" caminheira ... e domingo levámo-la ao "santuário" das Fontes Lares, onde o pai também já não ia há anos. As minhas velhas botas lá continuam, assistindo à passagem inexorável do tempo e ao avanço da vegetação sobre aquelas paredes, cada vez mais transformadas em pedras soltas, que contam e cantam memórias e histórias.

No Moinho do Rato e na praia fluvial da Ponte Nova, 31.Julho.2019
Há vida nas
margens do Côa
No "santuário" das Fontes Lares, onde jazem as minhas velhas botas que palmilharam léguas sem fim, 4.Agosto.2019
Pai e filha de regresso a Vale de Espinho, 4.Agosto, 12h10
Logo na primeira pequena caminhada, 4ª feira, tinha falado às netas numa certa "ideia maluca" que despertara no canto dos meus sonhos. "Querem ir dormir uma noite na serra, com o avô?", perguntei-lhes. A Sofia respondeu logo que sim, entusiasmada;
E os 3 "aventureiros" partiam para a "aventura", 5.08, 18h20
a Catarina teve algumas hesitações: "quantos km?", "não pode ser aqui perto?", perguntou. Lá lhes incuti a ideia de que acampar algures na serra seria uma aventura bué gira, muito mais gira do que quase ao lado de casa. A Catarina, contudo, esteve hesitante até pouco antes da partida; pelo contrário a Sofia, a mais nova, umas horas antes veio-me dizer ... "avô, eu estou ansiosa por irmos acampar na serra"... 😊
E assim, pouco depois das seis horas de uma tarde bastante quente, saímos rumo ao Côa e ao Vale da Maria. Na mochila, a tenda, 2 sacos cama para os três, farnel para o jantar e pequeno almoço, 3 litros de água ... e camisolas, super recomendadas pelos pais, que à noite iríamos ter frio. E realmente ainda bem que as levámos ... para servirem de almofadas... 😅
Ribeira do Vale da Maria
Junto à ribeira, numa primeira prospecção de local para montarmos o acampamento, um rebanho de ovelhas pastava no lameiro, guardadas por um cão que veio ver quem éramos. Primeiro pequeno susto, quando ele ladrou, dizendo lá na língua dele que para além daquele portão estavam as suas "meninas".
Vamos à procura de local para acampar...
Lá lhes transmiti que a postura não era ameaçadora, pelo contrário, mas a corpulência do dito e a coleira de bicos metálicos atemorizaram-nas; expliquei-lhes a função daqueles bicos, apesar de infelizmente já não existirem lobos na zona ... e também lhes expliquei o porquê da minha palavra "infelizmente". Voltámos contudo um pouco atrás. O local até era agradável, mas um dos objectivos também era ver o nascer do Sol, o que ali não seria possível, pelo que fomos subindo a encosta a nordeste da Fonte Moura, pelo velho trilho abandonado em direcção do Cabeço da Pelada. Muitos troncos enegrecidos e caídos reavivaram-me as tristes memórias do incêndio de Outubro de 2016, precisamente naquela encosta.
Lentamente, deixávamos Vale de Espinho para trás
Sensivelmente uma hora depois de termos saído de casa, estávamos num plateau acima da área dos troncos caídos, a cerca de 910 metros de altitude. Não estávamos muito acima de Vale de Espinho, mas a panorâmica abria-se sobre a aldeia e o vale da Maria, correndo para o Côa. Era ali. Tínhamos percorrido apenas pouco mais de 3km, mas as duas jovens estavam cansadas de saltar troncos ... além de desejosas de ver em pé a nossa morada para a noite que se aproximava.

Era uma vez uma casa de pano, morada para uma noite de
campo. Eram 20h ... e a fome já apertava...
Ao fundo, para além de Vale de Espinho, a Serra do Homem de Pedra seria o cenário para o nascer do Sol
Depois ... depois tivemos o lento recolher da luz do dia, com o astro rei a descer por trás da Pelada, por trás da Malcata, por trás do oceano que estava longe e que só víamos em pensamento.
Para aquelas duas alminhas, tudo era novo. A contemplação da Natureza, os sons, os animais que pudessem aparecer, os medos, a expectativa de como íamos dormir. Aliás ... um pequeno e inofensivo insecto dentro da tenda foi motivo de uma retirada estratégica da primeira visita aos aposentos... 😉
Claro que também houve ralhetes e, já escuro ... a ameaça de "deitar a casa abaixo" e regressar de noite a Vale de Espinho, face ao reboliço ocorrido na segunda incursão. Mas os ralhetes e ameaças são naturais ... e necessários. Fazem parte das aprendizagens e do crescimento. A melodia entre avós e neto(a)s deve ser uma melodia de partilha, de Amizade/Amor, de regresso nosso à criança que deve sempre continuar a existir em cada um de nós, mas não pode significar ausência de regras nem uma inversão de lugares.
A Lua, em quarto crescente, erguia-se por trás da tenda. Ao longe, ouvia-se tenuemente o ladrar de um cão.
Gradualmente o dia declina
e a Lua sobe nos Céus
Na penumbra, os olhos amedrontados viam para além da realidade; "avô, parece que está ali um homem no meio das árvores". Mas as estrelas começavam a salpicar o céu limpo ... e os sons da noite começavam a substituir os do dia. "Acham que podemos viajar no tempo?", perguntei-lhes. Incrédulas, lá lhes expliquei que a luz das estrelas mais distantes leva milhares de anos a chegar à Terra, pelo que podemos estar a ver estrelas que já nem existem.
"Conta-nos uma história inventada", pediram-me. Já deitados, lá lhes contei a história de um avô que, um dia ... levou as suas duas netinhas para uma longa caminhada, numa grande aventura num país distante,
cheio de mistérios e magias. Até que, pelo peso da magia e do sono, aqueles olhinhos se fecharam para a viagem astral dos sonhos. Tínhamos ouvido não há muito as onze horas no sino de Vale de Espinho, ou melhor ... na electrónica que substituiu o velho e belo som.
Também eu acabei por adormecer. Ambas tinham utilizado a "casa de banho improvisada" antes de se deitarem, como lhe chamara a Catarina, mas pelas duas e meia da manhã precisou de recorrer de novo ao tecto das estrelas. Voltou a adormecer assim que se deitou, mas eu fiquei desperto ... e às três horas, sentado na tenda, estava a escrever as palavras com que iniciei esta descrição de uma melodia entre avô e netas.
3h10 - Na escuridão da noite, vejo as luzes de
Vale de Espinho e os "pirilampos" vermelhos das eólicas
6.Agosto.2019, 6h40 ... e o Sol nasce para as terras de Vale de Espinho e da Malcata
Readormeci pouco depois das 4h. Como que despertado pelo relógio do Universo, quando acordei já havia claridade; eram 5h50; o Sol iria nascer daí a menos de uma hora. Dos dois sacos camas abertos para os três ... não se percebia qual estava onde. Estávamos os três directamente sobre o chão da tenda ... e ¾ dos dois sacos cama tinham sido raptados pela Sofia, que acordou pouco depois 😁
O despertar dos mágicos ... e o pequeno almoço
de duas aventureiras esfomeadas
A Catarina acordou poucos minutos antes do Sol despontar por trás da serra do Homem de Pedra. Para o pequeno almoço tínhamos bolos de Vale de Espinho. Depois ... era a segunda fase da "aventura". As mochilas iam agora mais vazias; dos mantimentos já só sobravam umas poucas batatas fritas; e tínhamos 1,5l de água para a segunda etapa. Nunca gosto de regressar pelo mesmo caminho e já lhes havia incutido essa ideia; desceríamos ao Moinho do Rato, que tinham conhecido dias antes. E assim, desmontada a tenda, antes das oito deixávamos aquele nosso "hotel" de todas as estrelas.
7h55 ... e o nosso "hotel" ficava para trás...
Começámos por subir o que faltava do Cabeço da Pelada, por vezes pelo meio das giestas. "Avô, mas não nos estamos a afastar de Vale de Espinho?", perguntavam as minhas companheiras de "aventura". "Sim, estamos, mas não por muito tempo. Já vamos começar a descer ", descansei-as.
Pelos giestais e pelos trilhos da Pelada,
íamos regressar à nossa base de Vale de Espinho
Aos mil metros de altitude do cabeço, inflectimos para norte ... e começámos a descer para o Côa. Quinze minutos antes das nove da manhã estávamos no Moinho do Rato. Reconheceram o sítio, tínhamos lá estado 6 dias antes. E pouco mais de meia hora depois entrávamos em Vale de Espinho e chegávamos a casa. A "aventura" durara apenas umas escassas 15 horas, tínhamos percorrido pouco mais de 8 km ... mas esta fora seguramente uma "aventura" que não esquecerão ... nem eu.

Moinho do Rato, 8h45 - O Côa abençoava o quase fim da "aventura" e o regresso à base
Sim ... tinha sido lá ao fundo, naqueles pinhais do Cabeço da Pelada, que um avô e duas netas tinham vivido esta autonomia
A melodia que perpassara nos meus sonhos tinha-se concretizado ... e talvez gerado ou alimentado a vontade para viverem outras. O Universo, que é inteligente, ditará o futuro... 😊🙏

O percurso desta "melodia entre avô e netas" (Clique no mapa para ampliar e aqui para o álbum completo de fotos)

2 comentários:

Aurora Martins Madaleno disse...

Gostei de ler, devagarinho e saboreando a paisagem, a história desta aventura do Avô, que eu conheço como humanista e amigo da Natureza, e as suas duas netinhas. Imaginei-me na mesma caminhada. Do local da tenda via o lado sul do Cabeço da Ponte onde houve abrigos, cachos de uvas castanheiros, frutas e pinheiros. Saudades! Obrigada pela partilha da história e das imagens. Bem haja!

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Bonito! O avô a meter o "Bichinho" nos netos, o mesmo é dizer preparando a passagem de testemunho! Um abraço.