quinta-feira, 17 de maio de 2018

Das terras de Ourém às terras do fim do mundo (3)

A 14 de Maio, no meu 16º dia de Caminho, saíamos de Pontevedra ao nascer do Sol. Poucos quilómetros depois, o Caminho Português percorrido pela maioria dos Peregrinos segue por Caldas de Reis, rumo a Padrón e a Santiago. Contudo, um número crescente de Peregrinos opta, a partir do rio Lérez, pela Variante Espiritual; era, também, a nossa opção.

Travessia do Rio Lérez, Pontevedra
14.05.2018, 7h15
Variante Espiritual - Ruta Traslatio
Padrón, 16 de Maio
Quando no ano 44 dC o Apóstolo Santiago regressou a Jerusalém, depois de pregar alguns anos nos territórios da Hispania, foi decapitado por ordem de Herodes Agripa I. Reza então a lenda que os seus discípulos hispânicos roubaram o corpo e transportaram-no numa barca de pedra, sem leme nem velas, que guiada por um anjo foi conduzida para a foz do Rio Ulla, até atracar à actual cidade de Padrón. Perpetuando a memória desta trasladação do corpo de Santiago, assim nasceu a Ruta Traslatio, naquela que é a única Via Crucis marítimo-fluvial do Mundo. E, com ela, a Variante Espiritual do Caminho Português, dividida em três etapas, entre Pontevedra e Padrón.
A bifurcação entre o percurso mais directo e a Variante Espiritual está muito bem assinalada, cerca de 3 km depois de Pontevedra. E todo o percurso está igualmente bem marcado, levando-nos a primeira etapa ao Mosteiro Beneditino do Poio e à vila piscatória de Combarro, típica pelos seus tradicionais espigueiros à beira mar.

Mosteiro Beneditino de San Xoán de Poio, 14.05.2018, 9h15
Ria de Combarro ... e chegamos à beira mar
Cruzeiro e Espigueiros de Combarro, 14.05.2018, 9h55
A partir de Combarro, o Caminho atravessa o interior da península do Grove, subindo a encosta rumo ao Mosteiro de Armenteira, com esplêndidas panorâmicas de terra e mar.

Sobre a baía de Combarro e a Ria de Pontevedra, das encostas que conduzem a Armenteira
Verdes ...
sempre os verdes
Mosteiro de Armenteira, 14.05.2018, 12h55
O Mosteiro de Armenteira é uma construção repleta de história ... e de lendas. Mandado construir no Séc. XII por D. Ero, ali o bom Abade terá conhecido o Paraíso; o que não admira, dada a Natureza envolvente. E ali nos alojámos, no Albergue de Peregrinos de Armenteira, sem dúvida um dos melhores albergues do nosso Caminho 2018. No dia seguinte teríamos uma das etapas mais belas.

Ruta da Pedra e da Auga, ao longo do rio Armenteira
A Ruta da Pedra e da Auga corresponde a um percurso de pequena rota (PR-G170) que originalmente dava acesso a meia centena de moinhos de água ao longo do rio Armenteira, desde o Mosteiro até ao concelho de Ribadumia. O trilho também era utilizado pelos Peregrinos que rumavam ao Mosteiro ... e constitui uma autêntica incursão no Paraíso, pela magia da água, da pedra, das luzes e cores!

Através da magia da água, da pedra, das luzes e das cores. Ruta da Pedra e da Auga, na manhã de 15.05.2018
O rio Armenteira é afluente da margem esquerda do Umia. Às dez horas estávamos na confluência, subindo depois o curso do Umia até Ponte Arnelas, onde a Variante inflecte para a Ria de Arousa.
O final desta segunda etapa foi já junto ao mar, num magnífico início de tarde e de belas paisagens costeiras. Antes das três da tarde estávamos em Vilanova de Arousa.

Rio Umia em Ponte Arnelas, 15.05.2018, 11h00
Ao longo da margem da Ria de Arousa e entrada em Vilanova de Arousa
Tal como em Armenteira, no Albergue de Peregrinos de Vilanova a afluência de Peregrinos era maior do que supúnhamos, permitindo um saudável convívio internacionalista. E o simpático Emílio, o hospitaleiro, dá-nos preciosas informações sobre o funcionamento e horário da barca que, no dia seguinte, efectua a terceira etapa ... a Traslatio. O bilhete custa 19 € ... contra os 50 € que uma empresa me havia pedido meses antes do Caminho...

Um jantar internacional no Albergue de Vilanova
Com a Rosa, mexicana, cidadã do Mundo ... cidadã da Vida e da Amizade!
O despertar no dia seguinte foi madrugador. Antes das sete tínhamos de estar no cais, para aquela que é sem dúvida a etapa rainha da Variante Espiritual, navegando pelas águas da Ria de Arousa seguindo a rota da barca que terá transportado o corpo de Santiago, até ao último trecho navegável do Rio Ulla ... a Ruta Traslatio.

Porto de Vilanova de Arousa, 16.05.2018, 6h40
Subindo a ria de Arousa ao nascer do Sol. O timoneiro da nossa barca chamava-se ... Santiago!
Fazer a Traslatio é percorrer a única Via Crucis marítimo-fluvial do mundo, uma colecção de 17 Cruzeiros que assinalam o percurso do Apóstolo. Segundo a tradição, a barca de pedra com o corpo de Santiago chegou até Iria Flavia, perto da actual cidade de Padrón. O vento e o frio eram cortantes, à medida que subíamos a ria, mas a bordo até houve chá quente ... para quem gosta de chá... 😊

Punta das Tres Cruces, na desembocadura do Rio Ulla ... onde nos sentimos a acompanhar o corpo de Santiago
Um chá a bordo ... para amenizar o frio
Entramos no Concelho de Catoira
Torres de Catoira, ou Torres do Oeste, mandadas construir pelo Bispo Cresconio no Séc. XI, para repelir os ataques Vikings
Cruzeiro de Catoira, na Ilha do Rato, Rio Ulla
Próximo do porto de Pontecesures, final da Via Crucis e da Ruta Traslatio, 16.05.2018, 8h25
Antes das oito e meia da manhã aportávamos em Pontecesures, muito próximo de Padrón. Tínhamos "acompanhado" Santiago até onde actualmente o Rio Ulla ainda é navegável.
A Variante Espiritual une-se ali ao percurso original do Caminho Português ... mas antes ainda tínhamos uma visita a fazer em Pontecesures. Por "Entre o Silêncio das Pedras" ... "apareceu uma casa com uns muros muito altos .... No cimo dos muros, como se de um castelo moderno se tratasse, diversas bandeiras ondulavam ao vento - estandartes com a Cruz de Cristo e Templária desenrolavam-se lentamente, criando uma atmosfera única."
" Bem-vindos à Mesa de Pedra" ... pareceu-me ouvir no ar enquanto entrávamos. Tal como o Pedro e a Sofia do romance do Luís Ferreira, fomos recebidos naquele espaço único pelo seu único hospitaleiro ... e por ali estivemos uma hora à conversa sobre o que o Caminho nos ensina, sobre a Vida ... sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo que íamos saboreando um café ... e uma saborosa tarte de Santiago.

Na Mesa de Pedra, em Pontecesures, 16.05.2018, 9h30 - Um ícone do Caminho ... "Entre o Silêncio das Pedras"
De Pontecesures a Padrón foi um salto. Ao aportar, a barca que transportou o corpo de Santiago terá sido amarrada à antiga ara pagã que deu o nome ao concelho - pedrón (provável deformação da palavra pedra, de origem grega) - e que se encontra sob o altar da Igreja de Santiago de Padrón, à beira do rio Sar, afluente do Ulla, com o Convento e a Fuente del Carmen na outra margem.

Chegada a Padrón, 16.05.2018, 10h25: Rio Sar e Convento del Carmen
Igreja de Santiago de Padrón
O pedrón ao qual terá amarrado a barca de
Santiago, conforme representa este baixo relevo na Igreja de Padrón
Convento e Fuente del Carmen, Padrón, com a representação da Barca de Pedra com o corpo de Santiago
Ao aportar a Padrón com o corpo de Santiago, a recepção não foi calorosa. Quem governava era a Rainha Lupa, que só concordou em acolher os restos mortais do Apóstolo após a superação de uma prova: os seus discípulos Atanásio e Teodoro tinham que matar um dragão e domar os touros bravos que viviam no Pico Sacro, o que conseguiram. Perante tal façanha, a Rainha Lupa converteu-se ao Cristianismo e deixou-os sepultar o Apóstolo, erguendo-lhe uma pequena capela.

Baptismo da Rainha Lupa por Santiago, coadjuvado pelos
seus discípulos Atanásio e Teodoro
O túmulo de Santiago esteve abandonado durante séculos, até que no início do século IX o eremita Pelayo foi testemunha de uma revelação divina, sob a forma de uns misteriosos resplandeceres sobre um bosque chamado Libredón, como uma chuva de estrelas. O fenómeno repetia-se em noites consecutivas. Os rumores chegaram ao bispo de Iria Flavia, Teodomiro, que se tornou no grande responsável pela difusão no mundo Cristão da descoberta do sepulcro de Santiago naquele a que se passou a chamar o Campus Stellae, actual Compostela. A crença de Teodomiro originou a intervenção do rei Afonso II, o Casto, que mandou edificar um templo em homenagem ao Apóstolo ... templo que se converteu gradualmente num importante lugar de peregrinação, a par de Roma e Jerusalém.

O Rio Sar em Padrón ... vindo das terras do Campus stellae (o rio Sar é o rio que passa em Santiago de Compostela)
Mas Padrón também é internacionalmente conhecida pelos seus famosos pimientos, cultivados na paróquia de Herbón, na bacia formada pelos rios Ulla e Sar. Finalmente, ainda em Padrón, em boa hora o "nosso" Pedro Barrilero levou-nos a visitar a Casa da Matanza, onde Rosalía de Castro passou os derradeiros anos da sua vida, hoje transformada em Casa-Museu. Sente-se ali a sua Vida e Obra ... quase sentimos a sua presença...
Casa-Museu de Rosalía de Castro, Padrón, 16.05, 11h20
Adiós, ríos, adios, fontes;
Adios, regatos pequenos;
Adios, vista dos meus ollos:
Non sei cando nos veremos...

Já passava do meio dia quando saímos de Padrón. Também nós aportámos, durante quase três horas, àquela bonita cidade, entre dois braços do Sar e a pouca distância do Ulla. As águas do Ulla ... levavam-me o pensamento para o "meu" Pico Sacro; quase conseguia ver os discípulos Atanásio e Teodoro domando os touros bravos da Rainha Lupa ... e conseguia ver a minha própria imagem, no meu primeiro Caminho de Santiago, no cume do Pico Sacro ... abençoando o Caminho já percorrido, à vista já de Santiago.

Cume do Pico Sacro, 13.07.2014, 9h50, ao 9º dia do "Caminho da Aventura" ... abençoando o Caminho já percorrido
Adeus Zé ... o Caminho
nunca termina...
E enfim ... Santiago
Santiago de Compostela, 17 de Maio
O 18º dia de Caminho - 20º para a Paula e Pedro - não terminara ainda. Porque a Vida é sempre uma sucessão de momentos, de imprevistos ... o mano Zé Manel viu-se forçado a interromper abruptamente o seu Caminho, poucos quilómetros depois de Iria Flavia; um contratempo inadiável pedia a sua presença urgente em Lisboa. Tínhamos acabado de almoçar, num Bar que merece referência, até porque não aparece nas referências do Caminho - Gran Chaparral; comida caseira, muito boa, bem confeccionada, em quantidade ... e a preço que nos surpreendeu. Depois ... restávamos três ... até ao fim do mundo; e a jornada terminaria à entrada de Teo, no Albergue "La Calabaza del Peregrino" ... onde brindámos ao Zé e convivemos com a simpática hospedeira. Estávamos apenas a 15 km de Santiago de Compostela.

No Albergue "La Calabaza del Peregrino", 16.05.2018, 20h
... um brinde ao Zé Manel ... e à simpática hospedeira
No dia seguinte, apesar da curta distância, o nascer do Sol marcaria como sempre a nossa saída. Pouco depois das onze ... estávamos no Obradoiro; e a entrada em Santiago pelo Caminho Português é sem dúvida, das que já conheço, aquela que até mais perto nos leva por belas áreas verdes.

Capela de S. Martinho de Francos, Teo, 17.05.2018, 7h18

Um pequeno almoço frugal, a Caminho de Santiago

Não ambiciono ... mas quando tiver que ser que seja no
Caminho! Este peregrino ... era 1 dia mais novo do que eu...
As Catedrais verdes sucedem-se, quase até entrarmos em Santiago de Compostela
Só na última meia hora percorremos área urbana. A sensação de chegar a Santiago qualquer de nós já a conhecia ... mas é sempre nova, sempre diferente. Porta Faxeira, Rua do Franco ... e estamos no Obradoiro ... com todo o nosso "mundo" às costas ... com Amor ... com esperança ... com Felicidade!

Santiago, Km '0', 17.05.2018, 11h10

Pelas ruas da emoção ao rubro, chegamos ao
Obradoiro ... onde o fim se torna início
Ao chegar a Santiago, depois dos primeiros momentos de regozijo e emoção, vividos com tantos outros Peregrinos, em cujos rostos lemos os nossos, o "cerimonial" já o conhecemos sobejamente: entrada na Catedral, o abraço ao Apóstolo, agradecendo e pedindo, a sempre longa espera pela Compostela, na Oficina do Peregrino, e, só depois desse "ritual", a deslocação ao Albergue escolhido, ou encontrado no momento. No nosso caso, tínhamos já reservado o Albergue "Blanco" ... que já conhecíamos do ano passado. Perto da Oficina do Peregrino, a cinco minutos da Catedral e com excelentes instalações, é sem dúvida recomendável. E ainda por cima este ano ... tivemos direito a um apartamento exclusivo, já que éramos quatro. Sim, 4: apesar do Zé Manel se ter visto obrigado a regressar ... trocámo-lo pela Rosa, a amiga mexicana que tínhamos conhecido em Vilanova de Arousa.

A Compostela ... e o certificado de que o meu Caminho
começou em Santa Cruz, três anos antes
Igreja do Convento de S. Francisco ... onde nunca deixo de entrar sempre que vou a Santiago de Compostela
Às 19h30, a Missa do Peregrino incluiu o tradicional Botafumeiro.
E depois do jantar ... o também já nosso tradicional Bar Fuco Lois esperava-nos, para nos esconjurar de "todos os males da nosa ialma e de todo embruxamento" ... até porque, no dia seguinte ... o nosso Caminho continuaria, rumo às terras do fim do Mundo...
Esconxuro da queimada, no
Fuco Lois, 17.05.2018, 22h30
(Escrito entre 1 e 3 de Junho de 2018, após o regresso do Caminho)
(Continua)         

1 comentário:

Teresa Gomes disse...

Tão bonito! O texto, as fotos. Tudo tão bonito!