A 14 de Maio, no meu 16º dia de Caminho, saíamos de
Pontevedra ao nascer do Sol. Poucos quilómetros depois, o Caminho Português percorrido pela maioria dos Peregrinos segue por
Caldas de Reis, rumo a Padrón e a
Santiago. Contudo, um número crescente de Peregrinos opta, a partir do rio
Lérez, pela
Variante Espiritual; era, também, a nossa opção.
|
Travessia do Rio Lérez, Pontevedra |
|
14.05.2018, 7h15 |
Variante Espiritual - Ruta Traslatio
Padrón, 16 de Maio
Quando no ano 44 dC o Apóstolo
Santiago regressou a Jerusalém, depois de pregar alguns anos nos territórios da
Hispania, foi decapitado por ordem de Herodes Agripa I. Reza então a lenda que os seus discípulos hispânicos roubaram o corpo e transportaram-no numa barca de pedra, sem leme nem velas, que guiada por um anjo foi conduzida para a foz do
Rio Ulla, até atracar à actual cidade de
Padrón. Perpetuando a memória desta trasladação do corpo de Santiago, assim nasceu a
Ruta Traslatio, naquela que é a única
Via Crucis marítimo-fluvial do Mundo. E, com ela, a
Variante Espiritual do Caminho Português, dividida em três etapas, entre Pontevedra e Padrón.
A bifurcação entre o percurso mais directo e a
Variante Espiritual está muito bem assinalada, cerca de 3 km depois de Pontevedra. E todo o percurso está igualmente bem marcado, levando-nos a primeira etapa ao
Mosteiro Beneditino do Poio e à vila piscatória de
Combarro, típica pelos seus tradicionais espigueiros à beira mar.
|
Mosteiro Beneditino de San Xoán de Poio, 14.05.2018, 9h15 |
|
Ria de Combarro ... e chegamos à beira mar |
|
Cruzeiro e Espigueiros de Combarro, 14.05.2018, 9h55 |
A partir de
Combarro, o Caminho atravessa o interior da península do
Grove, subindo a encosta rumo ao
Mosteiro de Armenteira, com esplêndidas panorâmicas de terra e mar.
|
Sobre a baía de Combarro e a Ria de Pontevedra, das encostas que conduzem a Armenteira |
|
Verdes ... |
|
sempre os verdes |
|
Mosteiro de Armenteira, 14.05.2018, 12h55 |
O
Mosteiro de Armenteira é uma construção repleta de história ... e de lendas. Mandado construir no Séc. XII por D. Ero, ali o bom Abade terá conhecido o Paraíso; o que não admira, dada a Natureza envolvente. E ali nos alojámos, no
Albergue de Peregrinos de Armenteira, sem dúvida um dos melhores albergues do nosso Caminho 2018. No dia seguinte teríamos uma das etapas mais belas.
|
Ruta da Pedra e da Auga, ao longo do rio Armenteira |
A
Ruta da Pedra e da Auga corresponde a um percurso de pequena rota (
PR-G170) que originalmente dava acesso a meia centena de moinhos de água ao longo do rio Armenteira, desde o Mosteiro até ao concelho de
Ribadumia. O trilho também era utilizado pelos Peregrinos que rumavam ao Mosteiro ... e constitui uma autêntica incursão no Paraíso, pela magia da água, da pedra, das luzes e cores!
|
Através da magia da água, da pedra, das luzes e das cores. Ruta da Pedra e da Auga, na manhã de 15.05.2018 |
O rio
Armenteira é afluente da margem esquerda do
Umia. Às dez horas estávamos na confluência, subindo depois o curso do Umia até
Ponte Arnelas, onde a Variante inflecte para a
Ria de Arousa.
O final desta segunda etapa foi já junto ao mar, num magnífico início de tarde e de belas paisagens costeiras. Antes das três da tarde estávamos em
Vilanova de Arousa.
|
Rio Umia em Ponte Arnelas, 15.05.2018, 11h00 |
|
Ao longo da margem da Ria de Arousa e entrada em Vilanova de Arousa |
Tal como em Armenteira, no
Albergue de Peregrinos de Vilanova a afluência de Peregrinos era maior do que supúnhamos, permitindo um saudável convívio internacionalista. E o simpático Emílio, o hospitaleiro, dá-nos preciosas informações sobre o funcionamento e horário da barca que, no dia seguinte, efectua a terceira etapa ... a
Traslatio. O bilhete custa 19 € ... contra os 50 € que uma empresa me havia pedido meses antes do Caminho...
|
Um jantar internacional no Albergue de Vilanova
Com a Rosa, mexicana, cidadã do Mundo ... cidadã da Vida e da Amizade! |
O despertar no dia seguinte foi madrugador. Antes das sete tínhamos de estar no cais, para aquela que é sem dúvida a etapa rainha da
Variante Espiritual, navegando pelas águas da
Ria de Arousa seguindo a rota da barca que terá transportado o corpo de Santiago, até ao último trecho navegável do
Rio Ulla ... a
Ruta Traslatio.
|
Porto de Vilanova de Arousa, 16.05.2018, 6h40 |
|
Subindo a ria de Arousa ao nascer do Sol. O timoneiro da nossa barca chamava-se ... Santiago! |
Fazer a
Traslatio é percorrer a única Via Crucis marítimo-fluvial do mundo, uma colecção de 17 Cruzeiros que assinalam o percurso do Apóstolo. Segundo a tradição, a barca de pedra com o corpo de Santiago chegou até
Iria Flavia, perto da actual cidade de
Padrón. O vento e o frio eram cortantes, à medida que subíamos a ria, mas a bordo até houve chá quente ... para quem gosta de chá... 😊
|
Punta das Tres Cruces, na desembocadura do Rio Ulla ... onde nos sentimos a acompanhar o corpo de Santiago |
|
Um chá a bordo ... para amenizar o frio |
|
Entramos no Concelho de Catoira |
|
Torres de Catoira, ou Torres do Oeste, mandadas construir pelo Bispo Cresconio no Séc. XI, para repelir os ataques Vikings |
|
Cruzeiro de Catoira, na Ilha do Rato, Rio Ulla |
|
Próximo do porto de Pontecesures, final da Via Crucis e da Ruta Traslatio, 16.05.2018, 8h25 |
Antes das oito e meia da manhã aportávamos em
Pontecesures, muito próximo de
Padrón. Tínhamos "acompanhado" Santiago até onde actualmente o
Rio Ulla ainda é navegável.
A
Variante Espiritual une-se ali ao percurso original do Caminho Português ... mas antes ainda tínhamos uma visita a fazer em Pontecesures. Por "
Entre o Silêncio das Pedras" ... "
apareceu uma casa com uns muros muito altos .... No cimo dos muros, como se de um castelo moderno se tratasse, diversas bandeiras ondulavam ao vento - estandartes com a Cruz de Cristo e Templária desenrolavam-se lentamente, criando uma atmosfera única."
"
– Bem-vindos à Mesa de Pedra" ... pareceu-me ouvir no ar enquanto entrávamos. Tal como o Pedro e a Sofia do
romance do Luís Ferreira, fomos recebidos naquele espaço único pelo seu único hospitaleiro ... e por ali estivemos uma hora à conversa sobre o que o Caminho nos ensina, sobre a Vida ... sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo que íamos saboreando um café ... e uma saborosa tarte de Santiago.
De Pontecesures a
Padrón foi um salto. Ao aportar, a barca que transportou o corpo de Santiago terá sido amarrada à antiga ara pagã que deu o nome ao concelho -
pedrón (provável deformação da palavra pedra, de origem grega) - e que se encontra sob o altar da
Igreja de Santiago de Padrón, à beira do rio
Sar, afluente do
Ulla, com o Convento e a
Fuente del Carmen na outra margem.
|
Chegada a Padrón, 16.05.2018, 10h25: Rio Sar e Convento del Carmen |
|
Igreja de Santiago de Padrón |
|
O pedrón ao qual terá amarrado a barca de
|
|
Santiago, conforme representa este baixo relevo na Igreja de Padrón
|
|
Convento e Fuente del Carmen, Padrón, com a representação da Barca de Pedra com o corpo de Santiago |
Ao aportar a
Padrón com o corpo de Santiago, a recepção não foi calorosa. Quem governava era a
Rainha Lupa, que só concordou em acolher os restos mortais do Apóstolo após a superação de uma prova: os seus discípulos Atanásio e Teodoro tinham que matar um dragão e domar os touros bravos que viviam no
Pico Sacro, o que conseguiram. Perante tal façanha, a Rainha Lupa converteu-se ao Cristianismo e deixou-os sepultar o Apóstolo, erguendo-lhe uma pequena capela.
|
Baptismo da Rainha Lupa por Santiago, coadjuvado pelos
seus discípulos Atanásio e Teodoro |
O túmulo de Santiago esteve abandonado durante séculos, até que no início do século IX o eremita
Pelayo foi testemunha de uma revelação divina, sob a forma de uns misteriosos resplandeceres sobre um bosque chamado
Libredón, como uma chuva de estrelas. O fenómeno repetia-se em noites consecutivas. Os rumores chegaram ao bispo de
Iria Flavia, Teodomiro, que se tornou no grande responsável pela difusão no mundo Cristão da descoberta do sepulcro de Santiago naquele a que se passou a chamar o
Campus Stellae, actual
Compostela. A crença de Teodomiro originou a intervenção do rei Afonso II, o Casto, que mandou edificar um templo em homenagem ao Apóstolo ... templo que se converteu gradualmente num importante lugar de peregrinação, a par de Roma e Jerusalém.
|
O Rio Sar em Padrón ... vindo das terras do Campus stellae (o rio Sar é o rio que passa em Santiago de Compostela) |
Mas
Padrón também é internacionalmente conhecida pelos seus famosos
pimientos, cultivados na paróquia de
Herbón, na bacia formada pelos rios
Ulla e
Sar. Finalmente, ainda em Padrón, em boa hora o "nosso" Pedro Barrilero levou-nos a visitar a
Casa da Matanza, onde
Rosalía de Castro passou os derradeiros anos da sua vida, hoje transformada em
Casa-Museu. Sente-se ali a sua Vida e Obra ... quase sentimos a sua presença...
|
Casa-Museu de Rosalía de Castro, Padrón, 16.05, 11h20 |
Adiós, ríos, adios, fontes;
Adios, regatos pequenos;
Adios, vista dos meus ollos:
Non sei cando nos veremos...
Já passava do meio dia quando saímos de
Padrón. Também nós aportámos, durante quase três horas, àquela bonita cidade, entre dois braços do
Sar e a pouca distância do
Ulla. As águas do Ulla ... levavam-me o pensamento para o "meu"
Pico Sacro; quase conseguia ver os discípulos Atanásio e Teodoro domando os touros bravos da Rainha Lupa ... e conseguia ver a minha própria imagem, no meu primeiro Caminho de Santiago, no cume do
Pico Sacro ... abençoando o Caminho já percorrido, à vista já de
Santiago.
|
Cume do Pico Sacro, 13.07.2014, 9h50, ao 9º dia do "Caminho da Aventura" ... abençoando o Caminho já percorrido |
|
Adeus Zé ... o Caminho
nunca termina... |
E enfim ... Santiago
Santiago de Compostela, 17 de Maio
O 18º dia de Caminho - 20º para a Paula e Pedro - não terminara ainda. Porque a Vida é sempre uma sucessão de momentos, de imprevistos ... o mano Zé Manel viu-se forçado a interromper abruptamente o seu Caminho, poucos quilómetros depois de
Iria Flavia; um contratempo inadiável pedia a sua presença urgente em Lisboa. Tínhamos acabado de almoçar, num Bar que merece referência, até porque não aparece nas referências do Caminho -
Gran Chaparral; comida caseira, muito boa, bem confeccionada, em quantidade ... e a preço que nos surpreendeu. Depois ... restávamos três ... até ao fim do mundo; e a jornada terminaria à entrada de
Teo, no Albergue "
La Calabaza del Peregrino" ... onde brindámos ao Zé e convivemos com a simpática hospedeira. Estávamos apenas a 15 km de
Santiago de Compostela.
|
... um brinde ao Zé Manel ... e à simpática hospedeira |
No dia seguinte, apesar da curta distância, o nascer do Sol marcaria como sempre a nossa saída. Pouco depois das onze ... estávamos no
Obradoiro; e a entrada em
Santiago pelo Caminho Português é sem dúvida, das que já conheço, aquela que até mais perto nos leva por belas áreas verdes.
|
Capela de S. Martinho de Francos, Teo, 17.05.2018, 7h18 |
|
Um pequeno almoço frugal, a Caminho de Santiago
Não ambiciono ... mas quando tiver que ser que seja no
Caminho! Este peregrino ... era 1 dia mais novo do que eu...
|
|
As Catedrais verdes sucedem-se, quase até entrarmos em Santiago de Compostela |
Só na última meia hora percorremos área urbana. A sensação de chegar a
Santiago qualquer de nós já a conhecia ... mas é sempre nova, sempre diferente.
Porta Faxeira,
Rua do Franco ... e estamos no
Obradoiro ... com todo o nosso "mundo" às costas ... com Amor ... com esperança ... com Felicidade!
|
Santiago, Km '0', 17.05.2018, 11h10
Pelas ruas da emoção ao rubro, chegamos ao
Obradoiro ... onde o fim se torna início |
Ao chegar a
Santiago, depois dos primeiros momentos de regozijo e emoção, vividos com tantos outros Peregrinos, em cujos rostos lemos os nossos, o "cerimonial" já o conhecemos sobejamente: entrada na
Catedral, o abraço ao Apóstolo, agradecendo e pedindo, a sempre longa espera pela
Compostela, na Oficina do Peregrino, e, só depois desse "ritual", a deslocação ao Albergue escolhido, ou encontrado no momento. No nosso caso, tínhamos já reservado o
Albergue "Blanco" ... que já conhecíamos do ano passado. Perto da Oficina do Peregrino, a cinco minutos da Catedral e com excelentes instalações, é sem dúvida recomendável. E ainda por cima este ano ... tivemos direito a um apartamento exclusivo, já que éramos quatro. Sim, 4: apesar do Zé Manel se ter visto obrigado a regressar ... trocámo-lo pela Rosa, a amiga mexicana que tínhamos conhecido em Vilanova de Arousa.
|
A Compostela ... e o certificado de que o meu Caminho
começou em Santa Cruz, três anos antes |
|
Igreja do Convento de S. Francisco ... onde nunca deixo de entrar sempre que vou a Santiago de Compostela |
Às 19h30, a Missa do Peregrino incluiu o tradicional
Botafumeiro.
E depois do jantar ... o também já nosso tradicional Bar
Fuco Lois esperava-nos, para nos esconjurar de "
todos os males da nosa ialma e de todo embruxamento" ... até porque, no dia seguinte ... o nosso Caminho continuaria, rumo às terras do fim do Mundo...
|
Esconxuro da queimada, no
|
|
Fuco Lois, 17.05.2018, 22h30
|
(Escrito entre 1 e 3 de Junho de 2018, após o regresso do Caminho)
(Continua)
1 comentário:
Tão bonito! O texto, as fotos. Tudo tão bonito!
Enviar um comentário