domingo, 13 de maio de 2018

Das terras de Ourém às terras do fim do mundo (2)

Do Porto a Ponte de Lima
Ponte de Lima, 10 de Maio
A seguir ao Porto tínhamos duas etapas longas, de quase 40 km, orientadas em função de dois Albergues icónicos do Caminho Português: S. Pedro de Rates - o primeiro espaço em Portugal, na época moderna, dedicado ao acolhimento de peregrinos a Caminho de Santiago - e a Casa da Fernanda, em Vitorino de Piães, onde há 14 anos um jovem casal decidiu abrir as portas de sua casa, de forma gratuita e voluntária, aos Peregrinos ... que se apresentem cansados 😓
Ponte de Moreira, Rio Leça, 08.05.2018, 7h35
Extenuados não direi, mas estas terão sido talvez as duas etapas mais cansativas, particularmente para os meus companheiros Paula e Pedro ... cujos pés se queixavam bastante de pisar pedra de calçada quase permanentemente. Claro que os meus também se queixavam, mas pessoalmente prefiro a calçada ao alcatrão quente. Terra, caminhos de terra ... nestes 75 km pisámos poucos... 😥. A saída do Porto - pouco passava das 5h30 da manhã - foi uma longa sucessão de zonas urbanas e industriais, por terras de Leça e de Moreira da Maia, quase até ao Mosteiro de Vairão, pouco antes do qual almoçámos, junto à Capela de Santo Ovídio, em Crasto.

Um almoço frugal em Crasto, junto à
Capela de Santo Ovídio, 08.05.2018, 11h30
Mosteiro do Vairão, 08.05.2018, 12h20

Em Vilarinho, encontrámo-nos com Santiago...
Ponte D. Zameiro, sobre o Rio Ave, 08.05.2018, 13h10
Segundo as Inquirições de D. Afonso II, a construção da Ponte de D. Zameiro - parte integrante do Caminho de Santiago - terá sido apoiada por um donativo pessoal de D. Afonso Henriques, num período em que a coroa sentia dificuldades em recolher todos os fundos de que necessitava.

Campos de Junqueira (e respectiva Igreja), entre o Rio Ave e Moldes
Chegada ao Albergue de S. Pedro de Rates, 08.05.2018, 15h50
Era o nosso segundo albergue público ... e portanto sem marcação. Mas o Albergue de Rates é grande e a hospitaleira muito simpática. Proliferava uma miríade de nacionalidades;
apesar de grande ... algum tempo depois a hospitaleira já estava a distribuir colchões no chão, num salão fronteiro. A rotina dos albergues é, só por si, uma das muitas vivências do Caminho: chegar, tomar banho, lavar roupa, estendê-la, ir às compras (se a intenção e a logística permitirem cozinhar), fazer o jantar, degustá-lo (e a que manjares tudo nos sabe) ... e, juntamente com tudo isto, Viver e conViver, entre nós e com outros como nós ... até chegar a hora de recolher ... quase sempre ainda com Sol... 😉

09.05.2018 Antes das 7h00 ... entrávamos no Minho
Entrávamos no Minho ... e chegávamos a Barcelos e ao Cávado. De repente, sentimo-nos transportados para Santo Domingo de la Calzada, no Caminho Francês, já que ambas as cidades estão ligadas a uma das mais importantes lendas medievais originárias nos Caminhos de Peregrinação a Santiago de Compostela. A lenda do Galo de Barcelos narra a intervenção milagrosa de um galo morto - ou uma galinha, no caso de Santo Domingo de la Calzada - na prova de inocência de um pobre Peregrino erradamente acusado de um crime que não cometera.

E os três Peregrinos chegam a Barcelos ... sob a protecção do famoso Galo 😊
Barcelos e o Rio Cávado, numa bela e quente manhã de Maio
Igreja Matriz de Santa Maria Maior de Barcelos
Largo da Porta Nova, Torre Medieval (acima) e Templo do Senhor Bom Jesus da Cruz, Barcelos
Depois de Barcelos esperavam-nos bonitas zonas rurais ... mas muita pedra de calçada. O nosso hermano Pedro ... quanto mais os pés lhe doíam mais acelerava...! Passamos Tamel (S. Pedro Fins), cruzamos o rio Neiva ... e passa já das cinco da tarde quando entramos na Casa da Fernanda, em Vitorino de Piães, apenas a 15 km de Ponte de Lima ... não fosse ela não nos achar cansados 😌

Belas paisagens rurais, ao longo de uma tarde minhota ... com muita pedra de calçada
Casa da Fernanda ... um dos mais originais Albergues no Caminho Português
A Casa da Fernanda não é o "Bodenaya português", mas a forma de receber da Fernanda, Jacinto e Mariana (a filha) é sem dúvida original e muito, muito acolhedora. Sente-se que há Peregrinos que já por ali passaram uma e outra vez, que se transformaram em amigos, em família, no seio da qual se convive, na hora do merecido relax, no jantar comunitário, ao pequeno almoço igualmente comunitário ... tudo pelo preço de um donativo e, mais importante, da felicidade sentida e partilhada.

Casa da Fernanda ... uma
forma de sentir o Caminho
E no dia seguinte estávamos em Ponte de Lima. Uma etapa curta, de apenas 15 km, permitiu-nos chegar às margens do Lima antes das 11h da manhã. O Albergue ... só abria às quatro da tarde ... mas as nossas já não foram as primeiras mochilas na longa fila que se formou à porta; e ali ficaram ... 5 horas ao Sol de Maio, enquanto passeávamos e almoçávamos na cidade.

Igreja de Vitorino de Piães, 10.05.2018, 8h30

Santiago sempre presente!
E chegamos à bela Ponte de Lima, 10.05.2018, 10h55
Fila de mochilas, à porta do Albergue de Ponte de Lima. Quem ganha ... é o bar em frente...
Além da cidade em si, Ponte de Lima constituiria outro marco no nosso Caminho: tal como a Anabela jantara connosco no Porto, o Mano Vítor e a "cunhada" Paula - outro Mano de outras "aventuras", Mano também do "Caminho da Aventura", o meu primeiro Caminho de Santiago - viriam jantar connosco na cidade do Lima ... e com eles traziam-nos de volta o Mano Zé Messias, agora preparado para palmilhar os passos que nos faltavam até ao Apóstolo, pelo menos. E onde escolhemos brindar à Amizade e a este saboroso encontro? Pois ... na tasca "Os Telhadinhos" ... mais conhecida por outro nome... 😛😊
Encontro de uma família alargada, n'"Os Telhadinhos"
de Ponte de Lima, 10.05.2018, 19h50
Ponte de Lima - Valença : a mítica Labruja
Valença, 11 de Maio
Na madrugada de Ponte de Lima, as botas saíram daquela miríade antes das seis da manhã do meu 13º dia de Caminho. A partir de Ponte de Lima ... eu ia pisar o chão que "Entre o Silêncio das Pedras" me parecia chamar ... sem esquecer que o Caminho não é o chão que pisamos ... o Caminho somos nós mesmos! Tínhamos pela frente a mítica Serra da Labruja ... o Cebreiro português.
Ponte do Arco da Geira, sobre o Rio Labruja, Arcozelo
As águas do rio Labruja rompem o silêncio das pedras
A etapa Ponte de Lima - Valença revelou-se-me a etapa-rainha até ali: 35 km de Natureza, de verde, de "catedrais", de magia! A subida da Labruja não é aquele temível desafio de que muitos falam. É uma subida íngreme, nalguns troços bastante pedregosa, mas perfeitamente ao alcance de quem esteja minimamente acostumado a desníveis ... e é fabulosa! Sobe-se o curso do rio que lhe dá nome, sucedem-se de início campos rurais e pequenas aldeias: Codeçal, Igreja, Labruja ... vindo depois o troço mais íngreme, até à Cruz dos Mortos e ao cume, a 406 metros de altitude.

A mítica subida da Labruja, na manhã do dia 11 de Maio
Na Cruz dos Mortos ... ou a Cruz de Ferro do Caminho Português
A Cruz dos Mortos, também conhecida por Cruz dos Franceses, recorda o local onde os habitantes de Labruja terão emboscado os retardatários franceses do exército de Napoleão, na invasão de 1809.

Alto da Labruja (406m alt.), 11.05.2018, 10h05
No alto da Labruja, os dias de céu azul estavam a mudar, antevendo alguns aguaceiros para a entrada na Galiza, no dia seguinte. Até Rubiães, a descida dos céus continuava mística, por entre locais e nomes que pareciam saídos de um romance de Tolkien: Giestal, Agualonga, Cabanas ... Rubiães.

Do alto da Labruja a Rubiães ... ou cenas saídas da pena de Tolkien
Igreja e Cruzeiro de Rubiães
Botas que são vasos ... vasos que foram botas...
Ponte romana de Rubiães, sobre o Rio Coura, 11.05.2018, 12h15
Cossourado (Rubiães): aqui nasceu, no início dos anos 90, a primeira seta dos Caminhos de Santiago
E continuamos por Catedrais verdes rumo a ...
... S. Bento da Porta Aberta, 11.05.2018, 13h10
Entre S. Bento da Porta Aberta e Gontomil
Sinalética bem plural ... com muitas opções por onde escolher...
E pouco depois das 16h do meu 14º dia de Caminho ... chegamos ao último albergue português: Valença
O Albergue de S. Teotónio, em Valença, era mais uma vez uma miríade de nacionalidades. Italianos e alemães dominavam. O Pedro foi o cozinheiro de serviço ... com ajudas 😉. No dia seguinte, 12 de Maio ... o Caminho continuaria em terras galegas.
De Valença a Pontevedra
Pontevedra, 13 de Maio
O dia 12 de Maio acordou cinzento e chuvoso, a relembrar os primeiros dias do Caminho. Saímos cedo do Albergue. Uma curta passagem pela fortaleza de Valença ... e atravessávamos o Minho pela velha ponte que nos conduziria a Tuy. Estávamos na Galiza! Passo a passo, dia a dia, com os meus Manos Paula e Zé Manel e o nosso hermano Pedro ... o Campus Stellae ia-se aproximando!


Ponte internacional
Valença - Tuy
Catedral de Tuy,
12.05.2018, 8h20
Ponte medieval sobre o Rio Louro, Tuy, 12.05.2018, 8h50
Santiago junto ao Rio Louro e Ermida da Virgem do Caminho
Os raios de Sol tentam penetrar nas névoas que se desprendem da vegetação...
Ponte sobre o Rio Louro, pouco antes de Orbenlle
Esta entrada na Galiza maravilhou-nos. Entretanto os aguaceiros diminuíram e o Sol espreitava timidamente. E que dizer quando de repente nos surge ... o Pórtico da Glória da Catedral de Santiago? Não, não estávamos a sonhar. À entrada de Orbenlle, o pintor galego Xai Óscar expõe numa das fachadas da sua casa natal um enorme quadro hiper-realista que simula a obra prima de Mestre Mateo, acompanhado por outro quadro monumental ilustrando um velho e experiente Peregrino.

Pórtico da Glória, à entrada de Orbenlle ... um verdadeiro descanso artístico en el Camino
Pouco depois desta maravilhosa obra ... testemunhámos contudo um dos factos mais deploráveis do Caminho.
Entre Orbenlle e Porriño, o percurso originalmente traçado pela Asociación Gallega de Amigos del Camino (AGACS) viu-se envolvido pelo Polígono Industrial de As Gándaras, tornando aquele troço extraordinariamente fastidioso. Em 2013, a mesma Associação inaugurou um percurso alternativo, através dos belos bosques que ladeiam o rio Louro. Mas ... bares, restaurantes e afins ressentiram-se da mudança. Já tinha lido acerca das setas desviadas ou retiradas,
levando os Peregrinos mais incautos a continuarem a percorrer o agora Polígono Industrial ... mas não imaginava a deplorável imagem que ia encontrar. No ponto de bifurcação entre o antigo e o novo percurso ... todas as setas foram pintadas por cima, com enormes borrões de tinta, tanto no solo, como num poste ... e até um marco do Caminho foi vandalizado. Imagens ... que não queríamos ver nos Caminhos.
Bifurcação pelo Polígono Industrial do Porriño ou pelos bosques do Rio Louro ... imagens de vandalismo organizado...
Percurso ao longo do Rio Louro, nas imediações de Porriño
Pouco depois das 14h30 terminávamos a etapa em Mos, uma simpática e acolhedora povoação a quase meio caminho de Pontevedra, que seria a etapa do dia seguinte. Simpática e acolhedora são contudo adjectivos que não se podem aplicar à hospitaleira do Albergue Municipal, que no entanto estava já lotado; em frente, a Tapería Flora, que igualmente funciona como albergue privado, contrasta muito pela positiva. No dia seguinte ... chegaríamos a Pontevedra.

Na acolhedora vila de Mos e respectiva Igreja de Santa Baia de Mos
"Baia", em galego ... é diminutivo de Eulália 😃. A Igreja de Mos venera, portanto ... a "minha" Santa Eulália 😊. Visitámos também o Pazo de Mos, guiados por uma simpática dirigente da Asociación Santa Baia de Mos ... embora fugindo da temível hospitaleira do respectivo albergue... 😛.

Santiaguiño, 13.05.2018, 7h40: marco do Caminho e monumento em honra das mulheres maltratadas
Panorâmica a norte de Mos, para terras de Redondela
Ria de Vigo à vista, entre Redondela e Ponte Sampaio
Ponte medieval de Ponte Sampaio (Santa María de Ponte Sampaio),  sobre o Rio Verdugo, 13.05.2018, 12h10
A afluência de Peregrinos continuava a aumentar, incluindo desta vez o primeiro grupo grande de portugueses. Ao longo do rio Tameza, sucederam-se os belos recantos verdes, acompanhados pelo som das águas e dos pássaros, mesmo até à entrada de Pontevedra.

Passos, águas, sons, cores, pensamentos, vivências ... e o Caminho avança, hora a hora, dia a dia...
Às duas da tarde entrávamos em Pontevedra. Tínhamos optado por reservar alojamento no Slow City Hostel, dado ser a única opção localizada no centro histórico. A relação qualidade/preço não é contudo famosa; umas únicas instalações sanitárias para 10 pessoas é manifestamente insuficiente; e não só ... para além de um insólito "fenómeno" ocorrido com um grupo de 6 espanholas ... que além de um duvidoso conceito de educação também não sabiam o significado ... de camaratas mistas... 😌

Capela da Virgem Peregrina,
Pontevedra, 13.05.2018, 15h30
Convento de S. Francisco, Pontevedra, 20h30
E ... um jantar bem
galego, em Pontevedra
No dia seguinte, como quase sempre ao nascer do Sol, estávamos a atravessar o Rio Lérez pela Ponte do Burgo, rumo a uma variante muito especial no Caminho Português: a Variante Espiritual.
(Escrito em 29 e 30 de Maio de 2018, após o regresso do Caminho)
(Continua)         

1 comentário:

João Bernardo disse...

Por aqui também já peregrinei, principalmente de Ponte de Lima para cima, mas descrito e mostrado assim, é como se lá tivesse voltado vivendo novamente sensações que não se esquecem... soberbo Callixto!