Nos meus "
anos loucos" do início dos 70s, a
Serra de Aire era destino frequente de "aventuras", naqueles meus velhos tempos em que me iniciei na Espeleologia, nas caminhadas, no são convívio, na vida ao ar livre. Para além da aldeia de
Zambujal de Alcaria, a aldeia da
Barrenta era "famosa" nas nossas "expedições", tanto que, muitas vezes, chamávamos
Barrenta à própria Serra d'Aire.
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Aldeia de Pia do Urso, 03.02.2018, 10h00 |
Nunca mais tinha voltado à
Barrenta. 47 anos depois, pela mão dos
Caminheiros Gaspar Correia e pela mão de um filho daquelas terras cársicas ... voltei à
Barrenta, passei próximo do velho
Cabeço do Roubo ... reavivei memórias perdidas numa noite de quase meio século.
Pelas nove e meia da manhã estávamos na aldeia de
Pia do Urso, típica aldeia serrana recuperada, na freguesia de
São Mamede e a escassos 12 km de
Fátima. A nossa actividade começou com o pequeno mas belo percurso do
Ecoparque Sensorial, orientado para a preservação dos valores ambientais da aldeia e para a divulgação das formas do modelado cársico.
Na
Pia do Urso ... estava no
Caminho de Fátima; o chamado Caminho da Nazaré, ou Caminho Poente, passa na aldeia. Mas o objectivo agora eram as cumeadas do planalto de
São Mamede, onde se abraçam os parcos terrenos com aptidão agrícola, ladeados de quercíneas, com particular destaque para
Quercus faginea. Presente em todo o percurso, como nota dominante, o solo pedregoso, calcário, que emergiu do fundo dos oceanos há 160 milhões de anos. O nosso guia, filho destas terras cársicas, tudo ia explicando, de tudo ia contando as suas vivências e as suas histórias.
E aproximavamo-nos da velha
Barrenta ... à medida que as horas também se aproximavam da hora do almoço...
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Ao longo dos trilhos da serra, junto ao Cabeço do Increal |
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Meio dia: a "muralha" calcária do Cabeço da Morada, pouco antes da Barrenta |
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Recuamos no tempo, à entrada da velha Barrenta |
Pouco depois do meio dia entrávamos na
Barrenta. Pouco me lembrava da Barrenta dos meus tempos da Espeleologia, mas logo à entrada a ruralidade quis-nos fazer recuar no tempo. Testemunha viva das labutas de outrora, uma eira associada a uma casa humilde, de pedra, ilustra os primórdios da arquitectura da região. Mas a nova
Barrenta também ilustra a velha lenda do "
velho da Morada".
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O nosso guia conta-nos a lenda do "velho da morada" |
Reza a lenda que um cavaleiro do castelo de Ourém um dia perdeu-se quando andava a caçar no vale da Morada. Já noite cerrada, avistou uma casa iluminada por candeias de azeite. O cavaleiro bateu à porta e pediu ao dono da casa, já velho, para passar ali a noite porque andava perdido. O velho respondeu que o acolheria, mas preveniu-o da simplicidade e pobreza do seu lar. Pediu então à mulher que pusesse mais lenha na fogueira e que fizesse papas de farinha de milho com mel. O cavaleiro, que nunca tinha provado tal coisa, comeu e gostou.
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Sentados à lareira, os três foram falando da vida do campo; e o cavaleiro combinou o dia em que o velho camponês havia de ir ao castelo, para ser tão bem recebido como ele foi ali, no misterioso vale da Morada. Assim, no dia previsto, o velho apresentou-se aos guardas do castelo. Ora, como o camponês tinha um carapuço na cabeça, umas botas de cabedal e umas calças de surrobeco, os guardas não o deixaram entrar. Mas o velho insistiu e insistiu, até que um guarda resolveu-se a falar com o cavaleiro. Qual não foi o seu espanto quando este mandou entrar aquele homem com aspecto tão rude! Mas no dia seguinte, o velho regressou ao vale da Morada muito alegre, por ter sido recebido num castelo de um nobre cavaleiro ... que agora era também um amigo.
(https://goo.gl/KKUt2o)
Mas a nova
Barrenta também é conhecida pelo seu "
Encontro Nacional de Tocadores de Concertina", que na sua 16ª edição, em Setembro de 2017, reuniu mais de 400 tocadores. A pequena aldeia, com pouco mais de 40 residentes, recebe nessa altura milhares de visitantes. Aliás, à noite, já em
Fátima ... seríamos brindados com uma exibição de três elementos do
Grupo de Concertinas da Barrenta, animando a habitual festa de Carnaval dos Caminheiros Gaspar Correia.
E o nosso almoço foi nas instalações da Associação Cultural da
Barrenta, no Largo da Saudade. A velha Barrenta, dos meus tempos da Espeleologia, lutou contra o despovoamento e a desertificação e conquistou admiração e um lugar no mapa e na cultura popular.
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Centro Cultural da Barrenta |
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E a jornada prossegue, para norte da Barrenta e do Cabeço do Roubo |
Pouco depois das duas retomámos o percurso, agora para norte, pelas
Covas Altas e o parque eólico de
Chão Falcão. O destino final era a aldeia do
Alqueidão da Serra. O dia, mais ou menos cinzento, viria a cumprir a "promessa" de alguma chuva a partir de meio da tarde. Mas, antes da chuva ... ainda vimos
Fátima ao fundo, do miradouro natural do
Moinho Velho.
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Numa tarde a ameaçar a chuva que aí vinha ... ao fundo avistávamos a Basílica de Nª Srª do Rosário! |
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E às quatro da tarde ... chegava a prometida chuva... |
Já na parte final ... a panorâmica sobre o
Planalto de S. Jorge perdeu-se no nevoeiro e na chuva. E mesmo a velha calçada romana de
Alqueidão da Serra teve uma visita rápida ... e escorregadia. Construída entre os Séc.s I aC e I dC, a estrada romana da
Carreirancha foi usada por diferentes civilizações. Foi este o caminho que conduziu D. Nuno Álvares Pereira ao Campo Militar de S. Jorge, na véspera da Batalha de Aljubarrota. 500 anos depois, as tropas napoleónicas também por aqui passaram ... e este foi o tema da Conferência a que assistimos no
Auditório José da Silva Catarino, no
Alqueidão da Serra. O repórter João Amado Gabriel prendeu-nos a atenção com o misto de realidade e ficção ligada ao terror vivido naquela época, retratada no seu romance "
Avô Capitão".
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Calçada romana do Alqueidão da Serra |
E se à
Barrenta eu não voltara em 47 anos, no
Alqueidão da Serra eu tinha passado há menos de 3 anos, com os meus "Manos" Zé Manel e AJ, entre
Santa Cruz e Fátima ... no terceiro dia d
o caminho que o destino não transformou em Caminho.
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Panorâmica sobre o Alqueidão da Serra ... no meio do nevoeiro e da chuva |
Já de autocarro, do Alqueidão da Serra rumámos a
Fátima, base de pernoita entre as duas etapas deste fim de semana caminheiro ... porque no dia seguinte tínhamos à espera o
Buraco Roto.
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Reguengo do Fetal, |
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4.02.2018, 10h10 |
Situada um pouco a norte do Alqueidão da Serra,
Reguengo do Fetal também se chamou Reguengo da Magueixa e mais tarde apenas Reguengo, que significa "terra do Rei". Até 1820, o rei, os conventos, as obras religiosas e as famílias nobres tinham certos direitos sobre as povoações; com a revolução liberal, tudo mudou. Fetal foi a forma de distinguir esta freguesia de centenas de outras com o mesmo nome, homenageando também
Nossa Senhora do Fetal, que desde o séc. XVIII tem em Reguengo uma ermida da sua invocação. Como quase todo o maciço estremenho, a envolvência faz parte de numerosos subsistemas cársicos, de que o "
Buraco Roto" é a exsurgência mais conhecida.
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A caminho do Buraco roto |
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No Buraco roto e panorâmica sobre Reguengo do Fetal |
Após o túnel natural do
Buraco roto, o trilho apresenta-se ladeado por carvalhiças, madressilva e gilbardeira. E vamos subindo até à EN 356 e ao Cruzeiro de Reguengo do Fetal, que pertence à Via Sacra inaugurada em 1927 entre esta aldeia e a
Cova da Iria. Por um trilho sinuoso e escadas de madeira e pedra, desce-se então à espectacular
Pia da Ovelha, cova natural de grandes dimensões, que deve o seu nome à pia ali construída por baixo de uma estalactite e que goteja abundantemente em época de chuvas. Ao contrário de sábado, contudo ... o nosso domingo foi um magnífico dia de Sol.
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Cruzeiro sobre o Reguengo do Fetal, na EN 356 |
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Na espectacular formação da Pia da Ovelha |
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Ao fundo o Alqueidão da Serra, visto da Pia da Ovelha |
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Descida da Pia da Ovelha para o vale |
Após a
Pia da Ovelha, uma pequena parte do grupo desceu directamente de regresso ao ponto de partida. Os restantes, continuámos ainda para sul, subindo ao
Cabeço do Poio, para depois entrar no
Vale dos Ventos ... onde o vento frio dava bem razão ao topónimo. E passava já da uma e meia da tarde quando regressámos ao autocarro, no
Reguengo do Fetal, culminando assim a componente pedestre do belo fim de semana que vivemos em terras do planalto de S. Mamede e do Fetal.
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De regresso ao Reguengo do Fetal e ao ponto de partida |
De referir que todos os anos, no primeiro fim de semana de Outubro, o Reguengo do Fetal se anima com a sua "festa dos caracóis". Porquê dos caracóis? Porque a deslocação da imagem de Nª Srª da capela para a igreja matriz e da igreja matriz para a capela é iluminada por milhares de lamparinas feitas com cascas de caracol, azeite e um pavio. Com as cascas, escrevem-se palavras e desenham-se figuras no solo, alusivas à procissão de
Nossa Senhora do Fetal.
Uma palavra final de agradecimento aos organizadores deste belo fim de semana caminheiro ... e de admiração pelo orgulho patente em cada momento. Orgulho pelas belas paisagens que nos mostraram, mas também pela partilha das vivências de ontem e de hoje das gentes da
Barrenta, do
Alqueidão e do planalto, pelos acordes das concertinas, pela viagem ao tempo das invasões francesas que generosamente nos ofereceram. Bem hajam!
O almoço foi em
Fátima, onde ainda houve tempo livre antes do regresso a casa. Pelo que me toca ... a última vez que ali cheguei foi a pé,
em 24 de Outubro passado, com 130 km nos pés. Se o Universo assim o permitir, em meados de Março lá chegarei de novo a pé ... e mês e meio depois de lá partirei, por terras de Oureana, a pé ... rumo ao Campo das Estrelas e às terras "do fim do mundo". Ultreïa!
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Basílica de Nossa Senhora do Rosário de Fátima, 4.Fev.2018, 15h45 |
4 comentários:
Obrigado Callixto pela partilha da bela descrição de mais uma bela aventura caminheira e cultural.
Foi realmente um bom fim de semana, a minha memória ficou mais enriquecida depois de ler a tua descrição tão pormenorizada e rica de informação. Muito obrigada
Maravilhosa reportagem!Com uma lágrima no canto do olho, um abraço!
Haverá algum recanto deste nosso MARAVILHOSO Portugal, que ainda não conheças?
Gostei de te ler,
Beijinhos
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