Entrado em Itália com quase dois meses e meio de Caminho desde Santiago de
Compostela ... o peso da saudade começava a superar o da mochila. A cada
passo, a lembrança da 'andorinha' que deixei, solitária, no 'ninho', pairava
como uma névoa densa, obscurecendo as belas paisagens que se sucediam,
testemunhas silenciosas da dualidade que habitava em mim. Por um lado, a
liberdade da caminhada e do Sonho que estava a Viver; mas, por outro lado, o
aprisionamento da saudade e da angústia que me ligavam a casa, como um fio
invisível ... como um cordão de prata que, ao invés de se romper, parecia
querer contrair-se, recolher ... recolher-me.
Nas primeiras etapas em Itália, aquela dualidade dominava os meus pensamentos.
Os telefonemas, as chamadas com imagem, as mensagens, não são analgésico
suficiente. Onde está, afinal, o meu Santo Graal interior? Porquê,
afinal, uma tão longa e tão dolorosa separação? Quem sou eu, afinal? O que
procuro? Contra quem ou contra o que 'cavalgo' nesta Cruzada?... Em Nice, na
véspera de entrar em Itália, o Universo tinha-me enviado três 'anjos' para me
acompanharem, física, espiritual e emocionalmente. Como se nos conhecêssemos
há décadas, a Anne-Marie, a Françoise e o Michel ouvem-me e eu oiço-os. Também
eles estão aqui por uma razão que, também eles, não sabem identificar. Também
eles têm histórias de Vida ... fragas e pragas ... ilusões e desilusões. À
terceira jornada juntos, já partilhara com eles os meus conceitos de Amizade /
Amor, o meu grau de entrega e de expectativa nas ligações amorosas (sentido
lato), conceitos, expectativas e entrega que já me levaram a criar ilusões,
mas que também me enchem de Felicidade e orgulho por ter Amigos / Irmãos há
50, 60 anos ... aqueles com quem podemos contar a qualquer hora ... aqueles a
quem podemos confiar os nossos segredos ... aqueles que, de certo modo ...
cresceram connosco.
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Porto Maurizio, à entrada de
Imperia, 23.09.2034, 15h55 ... no
primeiro dia de outono...
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As primeiras etapas em Itália foram como que um bordear do
Golfo de Génova. Optámos por caminhar sempre que possível junto ao mar.
As etapas originais da
Via della Costa, neste troço, afastam-se curiosamente do mar, com desníveis elevados. De
comum acordo, optámos por isso por um misto da
Via della Costa e da
Via Aurelia. E assim, ao longo destes dez dias, foram-se sucedendo
nomes célebres da Riviera Lígure:
Sanremo,
Imperia,
Savona,
Génova, as
Cinque Terre,
La Spezia...
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Alassio, entre Imperia e
Savona, 24.09.2034, 13h30
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Nestes dez dias fui tomando poucas notas ... pelo que esta crónica é, talvez,
a menos pormenorizada até agora. Mas a razão é simples: o convívio e a
estreita ligação com os meus três companheiros de Caminho deixa pouco tempo
para apontamentos e para este "Diário de Cruzada". Já não temos dúvidas de que
seguiremos juntos até Roma. Temos sido uma verdadeira equipa, onde cada um
encontra o seu papel. O Michel é o nosso
Chef improvisado, sempre que é
possível cozinhar alguma coisa nos alojamentos. A Françoise põe à prova as
suas artes de fisioterapeuta, quando os músculos ou os ossos de algum de nós
se queixam. A Anne-Marie é a mais espiritual do grupo; todas as noites nos
orienta com as suas reflexões ... a que provavelmente podemos chamar orações.
E eu? A mim tem-me cabido a missão de delinear o percurso. Quando há uma
semana, em
Noli, analisávamos as etapas
seguintes, a Anne-Marie proclamou, com a firmeza de uma sacerdotisa: "
On t'a déjà choisi comme notre capitaine. On te fait confiance avec le
GPS pour tracer la meilleure route!". Até nos encontrarmos em Nice, eles guiavam-se basicamente pela descrição
das etapas, o que em Itália não é suficiente, de todo.
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Na Piazza De Ferrari, o coração de Génova,
27.09.2034, 17h25
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A belíssima praia e vila de pescadores de
Camogli, 28.09.2034, 14h05
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Na escarpada Península de
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Portofino, 29.09.2034, 09h05
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Entre
Génova e
La Spezia, mesmo junto à costa o litoral torna-se cada vez mais escarpado e sinuoso,
originando etapas que, como ontem, chegaram aos 1800 metros de desníveis
acumulados, mas que também nos brindaram com paisagens fabulosas, como na zona
de
Camogli e
Portofino, ou das celebérrimas
Cinque Terre, cinco vilas costeiras que são Património Mundial da UNESCO.
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Monterosso-al-Mare, uma das
Cinque Terre lígures, Património
Mundial da UNESCO, 01.10.2034, 08h55
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Nos caminhos florestais do Monte della Santa Croce, entre
Levanto e La Spezia,
01.10.2034, 10h10 ... na etapa com mais desnível desde que saí
de Santiago: 1860m D+ em 31 km
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Depois de uma etapa bem dura, a de hoje foi muito mais calma, e também mais
curta. Saímos de
San Venerio, nos arrabaldes de La Spezia, em que o Caminho não chega a entrar. Pouco depois
de
Sarzana entrámos na
Toscânia e também na
Via Francigena
... que nos há-de levar até Roma. Na
Via Francigena, temos esperança de
vir a encontrar peregrinos ... e mais infraestruturas de apoio. Desde que
entrámos em Itália, temos variado entre a
accoglienza pellegrina de
algumas Igrejas, como a da Sagrada Família, em
Imperia, alguns
ostelli, como em
Génova, ou apartamentos a preços que, a dividir pelos quatro, se tornam
módicos. Sem dúvida que merece uma referência especial o
Monastero di San Prospero, em
Camogli, onde fomos principescamente
recebidos pelos
frati Benedettini, em excelentes instalações e com
direito a participar no jantar da comunidade monástica. Estavam
verdadeiramente encantados com a nossa peregrinação, particularmente com um
octogenário que já vem com mais de dois mil quilómetros nos pés ... e que
ainda lhe faltam muitos mais...
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A Cruzada de um Peregrino sem passaporte, de Santiago de Compostela
a Avenza, onde estamos hoje - 82 dias, 2256 km Veja
aqui todas as
etapas. Pode aceder ao mapa de cada uma delas clicando em cada
etapa.
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Publicado em 19.12.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos
Sonhos...
A maioria das personagens são ficcionadas, como os restantes peregrinos
que vou encontrando.
Nas personagens ficcionadas, qualquer semelhança com pessoas ou eventos
reais é mera coincidência.
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1 comentário:
Que tudo corra bem!
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