A Cruzada de um Peregrino sem passaporte (11)

De Santiago de Compostela a Jerusalém, em busca do Santo Graal interior
SEGUNDA-FEIRA, 2 DE OUTUBRO DE 2034 - AO LONGO DA RIVIERA LÍGURE
Entrado em Itália com quase dois meses e meio de Caminho desde Santiago de Compostela ... o peso da saudade começava a superar o da mochila. A cada passo, a lembrança da 'andorinha' que deixei, solitária, no 'ninho', pairava como uma névoa densa, obscurecendo as belas paisagens que se sucediam, testemunhas silenciosas da dualidade que habitava em mim. Por um lado, a liberdade da caminhada e do Sonho que estava a Viver; mas, por outro lado, o aprisionamento da saudade e da angústia que me ligavam a casa, como um fio
Catedral de San Siro, Sanremo, 23.09.2034, 10h20
invisível ... como um cordão de prata que, ao invés de se romper, parecia querer contrair-se, recolher ... recolher-me.
Nas primeiras etapas em Itália, aquela dualidade dominava os meus pensamentos. Os telefonemas, as chamadas com imagem, as mensagens, não são analgésico suficiente. Onde está, afinal, o meu Santo Graal interior? Porquê, afinal, uma tão longa e tão dolorosa separação? Quem sou eu, afinal? O que procuro? Contra quem ou contra o que 'cavalgo' nesta Cruzada?... Em Nice, na véspera de entrar em Itália, o Universo tinha-me enviado três 'anjos' para me acompanharem, física, espiritual e emocionalmente. Como se nos conhecêssemos há décadas, a Anne-Marie, a Françoise e o Michel ouvem-me e eu oiço-os. Também eles estão aqui por uma razão que, também eles, não sabem identificar. Também eles têm histórias de Vida ... fragas e pragas ... ilusões e desilusões. À terceira jornada juntos, já partilhara com eles os meus conceitos de Amizade / Amor, o meu grau de entrega e de expectativa nas ligações amorosas (sentido lato), conceitos, expectativas e entrega que já me levaram a criar ilusões, mas que também me enchem de Felicidade e orgulho por ter Amigos / Irmãos há 50, 60 anos ... aqueles com quem podemos contar a qualquer hora ... aqueles a quem podemos confiar os nossos segredos ... aqueles que, de certo modo ... cresceram connosco.
Porto Maurizio, à entrada de Imperia, 23.09.2034, 15h55 ... no primeiro dia de outono...
As primeiras etapas em Itália foram como que um bordear do Golfo de Génova. Optámos por caminhar sempre que possível junto ao mar. As etapas originais da Via della Costa, neste troço, afastam-se curiosamente do mar, com desníveis elevados. De comum acordo, optámos por isso por um misto da Via della Costa e da Via Aurelia. E assim, ao longo destes dez dias, foram-se sucedendo nomes célebres da Riviera Lígure: Sanremo, Imperia, Savona, Génova, as Cinque Terre, La Spezia...
Alassio, entre Imperia e Savona, 24.09.2034, 13h30
Marginal de Noli, com o Castelo de Monte Ursino ao fundo, 25.09.2034, 16h05
Noli foi uma das muitas Repúblicas medievais italianas
Nestes dez dias fui tomando poucas notas ... pelo que esta crónica é, talvez, a menos pormenorizada até agora. Mas a razão é simples: o convívio e a estreita ligação com os meus três companheiros de Caminho deixa pouco tempo para apontamentos e para este "Diário de Cruzada". Já não temos dúvidas de que seguiremos juntos até Roma. Temos sido uma verdadeira equipa, onde cada um encontra o seu papel. O Michel é o nosso Chef improvisado, sempre que é possível cozinhar alguma coisa nos alojamentos. A Françoise põe à prova as suas artes de fisioterapeuta, quando os músculos ou os ossos de algum de nós se queixam. A Anne-Marie é a mais espiritual do grupo; todas as noites nos orienta com as suas reflexões ... a que provavelmente podemos chamar orações. E eu? A mim tem-me cabido a missão de delinear o percurso. Quando há uma semana, em Noli, analisávamos as etapas seguintes, a Anne-Marie proclamou, com a firmeza de uma sacerdotisa: "On t'a déjà choisi comme notre capitaine. On te fait confiance avec le GPS pour tracer la meilleure route!". Até nos encontrarmos em Nice, eles guiavam-se basicamente pela descrição das etapas, o que em Itália não é suficiente, de todo.
Na Piazza De Ferrari, o coração de Génova, 27.09.2034, 17h25
A belíssima praia e vila de pescadores de Camogli, 28.09.2034, 14h05
Na escarpada Península de
Portofino, 29.09.2034, 09h05
Entre Génova e La Spezia, mesmo junto à costa o litoral torna-se cada vez mais escarpado e sinuoso, originando etapas que, como ontem, chegaram aos 1800 metros de desníveis acumulados, mas que também nos brindaram com paisagens fabulosas, como na zona de Camogli e Portofino, ou das celebérrimas Cinque Terre, cinco vilas costeiras que são Património Mundial da UNESCO.
Monterosso-al-Mare, uma das Cinque Terre lígures, Património Mundial da UNESCO, 01.10.2034, 08h55
Nos caminhos florestais do Monte della Santa Croce, entre Levanto e La Spezia, 01.10.2034, 10h10
... na etapa com mais desnível desde que saí de Santiago: 1860m D+ em 31 km
Depois de uma etapa bem dura, a de hoje foi muito mais calma, e também mais curta. Saímos de San Venerio, nos arrabaldes de La Spezia, em que o Caminho não chega a entrar. Pouco depois de Sarzana entrámos na Toscânia e também na Via Francigena ... que nos há-de levar até Roma. Na Via Francigena, temos esperança de vir a encontrar peregrinos ... e mais infraestruturas de apoio. Desde que entrámos em Itália, temos variado entre a accoglienza pellegrina de algumas Igrejas, como a da Sagrada Família, em Imperia, alguns ostelli, como em Génova, ou apartamentos a preços que, a dividir pelos quatro, se tornam módicos. Sem dúvida que merece uma referência especial o Monastero di San Prospero, em Camogli, onde fomos principescamente recebidos pelos frati Benedettini, em excelentes instalações e com direito a participar no jantar da comunidade monástica. Estavam verdadeiramente encantados com a nossa peregrinação, particularmente com um octogenário que já vem com mais de dois mil quilómetros nos pés ... e que ainda lhe faltam muitos mais...
A Cruzada de um Peregrino sem passaporte, de Santiago de Compostela a Avenza, onde estamos hoje - 82 dias, 2256 km
Veja aqui todas as etapas. Pode aceder ao mapa de cada uma delas clicando em cada etapa.
Publicado em 19.12.2024 ... ao viajar na grande Máquina do Tempo e dos Sonhos...
A maioria das personagens são ficcionadas, como os restantes peregrinos que vou encontrando.
Nas personagens ficcionadas, qualquer semelhança com pessoas ou eventos reais é mera coincidência.
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1 comentário:

Cristina disse...

Que tudo corra bem!