No dia 12 deixámos
Nerín... e mudámos de país. Saímos do "país" de
Sobrarbe... saímos de
Aragão... saímos de Espanha... e entrámos em terras da
Baixa Navarra...
França. Quando desenhei o programa deste périplo pirenaico, além do regresso
ao paraíso de Ordesa e Monte Perdido, relatado nas
crónicas anteriores, quis-lhe associar também... os
Caminhos de Santiago nos Pirenéus.
Caminho Aragonês e Baixa Navarra
Mas a jornada daquela sexta feira foi tudo menos uma mera ligação entre dois
pontos. Não sei se se pode recordar o futuro... mas lembram-se que eu percorri
o
Caminho Aragonês... em 2034? Pois é, pouco depois das dez da manhã estávamos em
Castiello de Jaca - a 835 km de Santiago - e
pouco depois na mundialmente famosa Estação Ferroviária de
Canfranc, transformada em
hotel de luxo. Tal como naquele futuro ficcionado, estávamos como que a percorrer o
Caminho Aragonês
al revés.
|
|
Castiello de Jaca, 12.09.2025, 10h30
... e na Estação
|
|
Não sabíamos se havíamos de ficar na Estação...
...ou apanhar o comboio... 😂
|
Devido à dificuldade de escolha... optámos por beber um chocolate quente com
churros 😂... e continuámos a subir o vale do Rio
Aragón, rumo a
Somport, visitando antes as ruínas do antigo Hospital de Santa Cristina, importante
centro de acolhimento de peregrinos durante a Idade Média.
|
|
Ruínas do antigo Hospital de Peregrinos
|
|
|
de Santa Cristina, pouco antes de Somport
|
|
|
Sob a bênção de Santa Maria de Somport, 12h15
|
|
|
Tinha começado um "mergulho" na vertente francesa, descendo o
vale d'Aspe
|
O
Caminho Aragonês, ou variante aragonesa, que muitos consideram que
começa em
Somport, na realidade tem a sua origem no
Caminho de Arles, ou
Via Tolosana, usado por peregrinos do sul de França e de Itália.
Era a única das quatro rotas de peregrinação que era percorrida por peregrinos
em ambas as direcções, no sentido de Compostela ... ou de Roma. Um deles fui
eu...
no futuro... 😐
Ao descer a Gave d'Aspe, continuámos portanto em Caminho de Santiago - ou de Roma - pelo menos até
Accous, em que inflectimos para ocidente,
paralelos à fronteira, por estradas de montanhas bucólicas, em que
predominavam as ovelhas, cavalos... e nevoeiro.
|
|
Floresta de Irati, embora ainda sem
as cores outonais que celebrizaram aquela magnífica floresta de faias
e abetos
|
|
|
A meio da tarde chegámos a este paraíso à beira do
Nive, o rio de
Saint Jean-Pied-de-Port ✨💫
|
|
|
Sim... ali à direita é a sala de refeições do Logis 💖
|
Tal como tínhamos estado três noites em
Nerín, tínhamos reservado
igualmente três noites neste autêntico "retiro", quase desligados do mundo
cada vez mais louco em que vivemos. Embora administrativamente pertença à
Nouvelle-Aquitaine, o nome da povoação mais próxima -
Esterençubi - evidencia bem as profundas
raízes bascas desta região pirenaica, histórica e culturalmente denominada
Baixa Navarra. As fronteiras políticas, como em tantos outros locais do
planeta, são apenas isso mesmo: políticas.
O termo "Baixa Navarra" - Nafarroa Beherea, em basco - vem da divisão
histórica do antigo Reino de Navarra, que existiu entre os séculos IX e XVI. O
reino estendia-se de ambos os lados dos Pirenéus, abrangendo partes do que
hoje é o norte de Espanha - Alta Navarra - e o sul de França - Baixa Navarra.
|
|
Esterençubi, pequena e bela
cidadezinha nas margens do Nive,
13.09.2025, 11h15
|
Na senda das nascentes do Nive e da Gruta de
Harpea
Sábado, 13 de setembro, foi dia de inteiro
relax. E no domingo...
tínhamos as nascentes do
Nive para
descobrir. Os mapas assinalam um local, próximo do nosso
Logis, como
Sources de la Nive, acessível numa curta
caminhada de pouco mais de 1 km. Mas os mesmos mapas também assinalam que a
linha de água vem de mais acima. E assim... na manhã de domingo fomos à
descoberta...
|
|
Pequena caminhada a dois às
Sources de La Nive, na manhã de
domingo, 14.09.2025
|
O local assinalado como
Sources de la Nive situa-se no meio de uma
frondosa floresta, um pouco a sul do nosso
Logis. O local é bem
aprazível mas, como as cartas mostram, as águas já vêm de bem mais acima. Na
realidade, o
Nive -
Errobi, em basco - não tem uma única nascente, resulta da confluência de vários
cursos de água que descem dos altos vales junto à fronteira espanhola. Há quem
veja em
Errobi uma metáfora para a própria língua basca: fluida,
resistente, profundamente enraizada na paisagem, como que levando consigo os
nomes, os sons e os silêncios da Baixa Navarra.
|
|
A minha parceira optou por regressar à "base", mas eu ainda segui a
solo pelo trilho que sobe aquele verdejante vale!
|
No fundo do vale, o mapa já assinala a linha de água com o topónimo
Harpeko Erreka, ou seja, o riacho de
Harpea, já que outro local que surge destacado nas cartas é a
Grotte d'Arpea -
Harpeako leizea -
situada ainda a uns bons 3 km. Até porque os franceses almoçam cedo e a minha
arraiana me esperava... resolvi descer também. Só fui até onde termina a linha
azul no registo à esquerda... mas também porque sabia que, à tarde... o
Logis dispunha de bicicletas eléctricas ao dispôr dos hóspedes 💖
E assim foi: a meio da tarde e a solo, subi até à linha de fronteira e à
fantástica Gruta d'Arpea, com fabulosas
paisagens de montanha.
|
|
Armado em ciclista (mas numa boa eBike...), subi aos céus e à
fronteira... de uma mesma Navarra, um mesmo País Basco!
|
|
|
A caminho da Gruta d'Arpea, sob os picos de Errozate e Mendizar, formando um
anticlinal em forma de “V” invertido.
|
Desde tempos pré-históricos, a Gruta de
Arpea foi usada como refúgio
pastoral, protegida dos ventos e rodeada por nascentes. A sua forma geológica
revela camadas de rocha com cerca de 40 milhões de anos, cada uma
representando ciclos de tempo com cerca de 20.000 anos. No seio daquela
paisagem, parecia que estava a viver um arquivo do Tempo, um abrigo de
memórias líquidas e pétreas.
Dizem que antes de o Errobi correr entre as pedras,
ele escutou histórias...
Na dobra de Harpea, onde a montanha se abre como um livro antigo,
vivem as lâmias, mulheres de água e silêncio, com pés
que não são de gente e olhos que lembram o tempo antes do tempo.
Ao cair da tarde, penteiam os cabelos com pentes de ouro,
sentadas à beira dos regatos que ainda não têm nome.
Quem passa e escuta o murmúrio pensa que é o vento,
mas é o rio a aprender a falar.
Harpeako leizea não é apenas gruta... é ventre.
Ali, entre estratos dobrados como véus, o Nive começa a
sonhar.
Não nasce de uma fonte, mas de um pacto entre pedra e água,
entre mito e memória. E quando o rio finalmente desce,
levando consigo o segredo das lâmias e o eco da gruta,
ninguém sabe ao certo
se o que corre entre as margens é água ou lembrança...
“Errobi garaiko haraneko lamiaren kondaira ” ("Lenda das lâmias do vale
do alto Nive")
|
|
Pouco depois das seis da tarde estava a ver correr as águas do
Nive... junto ao nosso Logis des Sources...
|
Não encontrei as lâmias... mas também não as poderia ver. Se as vires...
Não a olhes - ou perderás o caminho...
Não a chames - ou esquecerás o teu nome...
Ela é água que lembra, pedra que sonha,
e o rio que corre leva consigo o que não se pode dizer.
E estávamos na véspera de deixar, também, a nossa segunda "base" pirenaica.
Mas os dias seguintes seriam, ainda... muito especiais...