quarta-feira, 20 de maio de 2020

De Adão Lobo (Cadaval) à Praia da Consolação

... ou as folhas das memórias guardadas no tempo...

Há uns bons tempos atrás, a minha amiga Madalena - dádiva dos deuses incas - falava-me de memórias ... de memórias familiares da sua Adão Lobo, aldeia do termo da vila do Cadaval onde tem raízes e onde habita … ali … entre o mar e a Serra de Montejunto, onde ainda há uma semana iniciámos um desconfinamento caminheiro.
Das brumas do passado - assim como eu tenho memórias da "minha" Praia de Santa Cruz - a Madalena falava-me também da Consolação … das memórias de infância … de idas à praia de bicicleta … das histórias e estórias do seu avô padre! Destas conversas - desta Amizade - acendeu-se-me rapidamente uma luz … uma espécie de néon que acendia e apagava: "De Adão Lobo à Consolação". No dia seguinte, tinha um esboço de percurso; sensivelmente 30 km; a coisa era perfeitamente "fazível" ... e apresentei o projecto à Madalena. "Se quiseres ... esta é a tua caminhada ... a caminhada das tuas memórias"; o semblante iluminou-se-lhe ... mas disse-me logo:
Adão-Lobo, 20.Maio.2020, 7h35
Esta não é a "minha" caminhada… 😒
É a de quem a percorrer… 😇
É sobre o tempo duma memória…
que já nem me "lembro" bem…
Apenas ficou a "história"
Duma infância que o tempo tem…
Esta será outra história
De uma outra folha da memória
Que o tempo há-de guardá-la também… 🥰
(Madalena Estácio Marques)        
A Lucília, boa Amiga e companheira também de algumas "aventuras" - inclusive da autonomia no Gerês vivida em Sonhos... - também alinhou. Às sete da manhã estávamos assim a deixar um carro na Consolação ... e pouco mais de meia hora depois estávamos a partir do grande casarão em Adão Lobo, recheado de memórias. Ali perto, a adega onde se fazia o vinho ... "e tudo lá está como dantes ... e os tonéis do vinho ... altíssimos; ele da porta, quase sem balanço ... conseguia dum salto empoleirar-se lá p'ra cima" ... conta a Madalena sobre o seu avô padre ... atleta ... corredor de barreiras.
Dali ... da sua casa/memória ... todas as manhãs a Madalena vê nascer o Sol junto à "sua" Serra, a Serra de Montejunto que há uma semana palmilhámos ... em manhã de nevoeiro e chuva mística.
À saída de Adão-Lobo, 7h50
O que rezam as histórias sobre o topónimo Adão-Lobo é que o Rei ia caçar para aquelas bandas, com a sua comitiva ... onde as damas também acompanhavam. Conta-se que, na altura, havia por ali muitos lobos ... e que uma dama, por certo assustada, terá gritado "ai o lobo...ai o lobo...ai o lobo". Um pagem, de seu nome Adão, salvou então as damas das garras do lobo, indo em sua perseguição.

Estávamos na zona de vinhas do Oeste e deixávamos a Serra de Montejunto para trás
Rapidamente entrámos em zona de vinhas, enquanto a Serra de Montejunto ficava para trás, envolta num capacete que lhe guardava os mistérios. Em Famões cruzámos o Rio Real, no seu curso entre a serra e a Lagoa de Óbidos, com o Bombarral ligeiramente a norte. "Aqui há um caminho onde dantes passávamos", dizia-me a Madalena a seguir ao rio; "pois é por aí mesmo que vamos", respondi. Na medida do possível, claro que no estudo do percurso tinha procurado fugir o mais possível ao alcatrão.
Pouco passa das oito da manhã, cruzamos o Rio Real logo a seguir a Famões ...
... e entramos no concelho do Bombarral, que deixamos a norte
O Caminho faz parte de nós ... e
nós fazemos parte do Caminho...
Cruzada a linha do Oeste, o que é que me aparece num poste? Pois ... as setas azuis e amarelas! Decididamente, o Caminho faz parte de mim; trata-se do Caminho do Mar, com origem no Estoril/Cascais e que segue pelos concelhos de Sintra, Mafra, Torres Vedras e Bombarral, rumo a Fátima ... e a Santiago de Compostela.
Cruzada também a A8, passámos a pequena aldeia de Vale Covo. Os campos pareciam uma paleta de verdes, amarelos e lilazes, inspirando a Madalena a recitar a sua "deusa", Florbela Espanca:

        Os meus males ninguém os adivinha…
        A minha Dor não fala, anda sozinha…

E as folhas das memórias continuaram, através de "uma ruralidade comovente, onde a amizade rola docemente ... decorre sem pressa a comer caminho, desde a infância a amadurecer como vinho..." ... nas palavras da Madalena.
Belos campos multicolores, próximo do Casal da Misericórdia
Através de "uma ruralidade comovente, onde a amizade rola docemente ... decorre sem pressa a comer caminho..."
Vale Largo, Casal dos Poisos ... e lá íamos comendo caminho. Pouco depois do meio dia estávamos em S. Bartolomeu dos Galegos, com 18 km percorridos. Eram horas de almoço.
S. Bartolomeu dos Galegos: Café ... e Junta de Freguesia
Sentámo-nos no exterior do Café Central, frente à Junta de Freguesia ... e aí era eu quem tinha memórias...! Ao dono do Café, mostrei uma foto. "Veja lá se conhece aí alguém"; e diz logo ele: "Conheço, são ali da Junta ... e estão lá ". Pois é, há 5 anos, no meu caminho desde Santa Cruz - que o destino não transformou em Caminho - a Junta de Freguesia foi o meu primeiro carimbo na Credencial daquele que seria o meu segundo Caminho de Santiago
S. Bartolomeu dos Galegos,16.Abr.2015 ... 5 anos antes...
... e a referida foto tirámo-la com as duas simpáticas funcionárias. Uma delas reconheceu-me! E claro que ambas se lembravam dos "3 mosqueteiros" que, há 5 anos, por ali tinham passado e pedido, pela primeira vez para elas, um carimbo de um Caminho de Santiago. Desta vez não tirámos foto, com pena; elas estavam de saída para almoço ... e nós completámos o nosso almoço ... e seguimos rumo noroeste, em direcção ao mar.
Entre S. Bartolomeu dos Galegos e Bufarda. Geodésico da Ciranda (131m alt.)
Nos campos próximos de Camarnais, uma nespereira à beira do caminho estava convidativa ... e aquele que as minhas companheiras de jornada acharam um esbelto e jovem agricultor convidou-nos. "Não querem umas nêsperas? Colham à vontade". Mas pouco depois de uma meia dúzia de nêsperas surgiu outro agricultor menos esbelto a vociferar ... "Então ainda não chega?". Deduzimos que seriam ... filho e pai, respectivamente... 😜. Rapidamente prosseguimos caminho, rumo à Bufarda.
E pelas 13h30, do alto da Ciranda ... ao fundo já se via o mar. A Madalena estava ... entre a sua Serra e o seu Mar...
Moinhos do Alto da Foz, próximo de Bufarda
Como a Madalena havia de dizer mais tarde, nós estávamos ...
Nos braços d'aventura
Desde a infância da ternura
Desta Serra até ao mar
Com tais amigos se perdura
Sem pressa e vontade de durar...
O destino era agora S. Bernardino ... onde chegaríamos ao mar. E entretanto tinha-se já iluminado nas nossas mentes um outro néon: e porque não, numa próxima etapa ... fazer Consolação - Santa Cruz? Mais ou menos a mesma distância, talvez um pouco mais desnível, mas principalmente uma ligação entre memórias ... e não só! Um dia ... qualquer dia...
Casais do Júlio e S. Bernardino, com a Consolação ao fundo ... e Peniche ... e as Berlengas
Praia de S. Bernardino, 14h50. Faltava pouco ... e agora sempre rente ao mar!
Em S. Bernardino ... também a Lucília tinha e tem memórias ... e também eu lhes falei dos meus 15, 16, 17 anos, quando, a partir de Santa Cruz ... também eu calcorreava esta costa ... de bicicleta ... e até de motorizada, numa Derbi alugada ao velho e histórico Sr. Filipe. E a Madalena contava-nos que também ela andava de bicicleta, falésias fora ... mas esquecia-se que a bicicleta tinha travões...; "livre como eu...uma selvagenzinha...perfeita selvagem...🤩" ... palavras dela... 😊

Praia de S. Bernardino, com as suas
insólitas formações rochosas ...

... e rumamos a norte!              
                                     Trago o destino das águas
                                     No aguardar dos rochedos
                                     Dizem que o tempo é que apaga as mágoas
                                     Quem será que apaga os medos?...        (Sebastião Antunes, "Ninguém é dono do mar...")
Acompanhando agora as arribas litorais, agradou-nos ver a "famosa" Casa do Gato Cinzento recuperada. Qualquer de nós três já por ali passara outras vezes, testemunhando a degradação de uma quinta e uma mansão que terá pertencido a Loretta Young e que sempre esteve envolta em mistérios; existem testemunhos, entre outros ... de um cão fantasma que guarda permanentemente o portão...

Quinta do Gato Cinzento, entre S. Bernardino e Consolação. Que mistérios encerra esta propriedade?...
S. Bernardino ficou para trás ... e lá ao fundo ... muito ao fundo ... está Santa Cruz
Enquanto que, virados a norte ... temos já a Consolação à vista ... e as Berlengas
Mas o Mar ... o Mar continua a não ser de ninguém...
Antes das três e meia estávamos no Porto Batel ... mais um local de memórias da nossa "Mada". Como que numa catarse ... ou num êxtase contemplativo ... a Madalena sentou-se sem palavras sobre as arribas ... talvez olhando o Tempo ... talvez vendo a Alma do seu Mar sem fim...

Porto Batel ... e um olhar que se perde num Mar sem fim ... numa viagem astral ... num continuum espaço-tempo...
"Todos os anos no nosso Verão de crianças e adolescentes ... apareciam golfinhos mais ao largo ... em bandos que se avistavam da praia..."
Mais vinte minutos e estávamos na Consolação, com 30 km percorridos. Virada a sul, a praia vulgo "do rabo-ao-léu" tem de há muito propriedades curativas. O Padre Tomás Gabriel Ribeiro - o avô padre da nossa "Mada", sacerdote depois de enviuvar - foi o impulsionador das benfeitorias do clima/atmosfera específicos daquela praia e das suas rochas, dada a exposição ao Sol, o calor húmido e o iodo acumulado nas algas. Muita gente melhorou autenticamente ... e daí começou a sua fama.
A chegar à Consolação; ao fundo, a Fortaleza e a Praia Sul, rochosa e medicinal ... a praia do "rabo-ao-léu"
Capela de Nossa Senhora da Consolação
Frente à Capela, o Cruzeiro e a Fortaleza da Consolação. Tínhamos cumprido o objectivo.
Reza a lenda que um náufrago conseguiu-se salvar de grande tempestade. Naquele mar e naquelas rochas, deu à costa vivo e, em agradecimento, mandou erigir a Capela à Nossa Senhora da Consolação ... uma Senhora de longos cabelos pretos a caírem sobre as vestes. Séculos mais tarde, na Igreja do Cadaval ... o Padre Tomás Gabriel Ribeiro (o avô padre) casou duas filhas ... no mesmo dia ... e juntas entraram pela álea do portão pequeno da casa de Adão-Lobo, onde foi dado o copo de água ... a que assistiu toda a aldeia. Na mesma capela quiçá baptizou também alguns netos.
"O meu avô metia a criançada toda a fazer ginástica...e levava-os para o "medão grande"...ele no meio ...rapazes dum lado e meninas do outro...banhos de sol ao "natural"... Ele ia a nado da Consolação a Peniche com o filho mais velho...quando se cansava o filho...ia às costas do pai... Num dia de temporal...em que nem os marinheiros iam ao mar...ele no seu batel "Arcanjo Gabriel"...apesar dos protestos de todos...foi à Berlenga, de Peniche...e voltou..."
Ponta da Consolação e Praia Norte - a "praia dos tubos". Ao fundo, Peniche, o Cabo Carvoeiro e a Berlenga
Um pouco desfocados ... mas a alegria estampada
em três rostos de uma equipa a brindar à Vida!
Tínhamos cumprido o nosso objectivo. Em 30 km da tal amizade que rola docemente e sem pressa, ligámos pontas de memórias ... folhas guardadas no tempo. Dali até Peniche seria um salto...
"Adolescentes ... vagueávamos pela praia e íamo-nos pelo areal até às bandas de Peniche ... a cantar ... e ... estavam os pescadores a puxar os barcos e a arrastar as redes ... todos nos púnhamos a ajudar... No outro dia ... era um fartote de peixe p'almoçar..."
Muito mais histórias e estórias a Madalena contou ... e muitas mais teria para contar ... mas este dia cheio aproximava-se do fim. No carro que ali ficara regressámos a Adão-Lobo ... à casa onde tínhamos começado
Adão-Lobo, cerca de 1996 - A Madalena inaugura o busto
do Padre Tomás Gabriel Ribeiro ... seu avô e padrinho
... à casa onde, ao lado da adega ... há um canto onde esteve e está (embora agora cheio de erva alta e algo vandalizado) ... um busto do avô padre ... em agradecimento das pessoas que salvou da pneumónica. Na festa de inauguração do busto, a Madalena ... foi quem descerrou a bandeira que o tapava. Algures numa outra dimensão, o Padre Tomás Gabriel Ribeiro seguramente se orgulhará desta sua neta e afilhada ... que um dia o Universo, através dos deuses incas ... cruzou na minha Vida. Outras coincidências ... sinais ... memórias ... contarei numa das próximas "aventuras"...
Ver o álbum completo

2 comentários:

Margarete disse...

Tão bom encontrar companheiros que partilhem os mesmos interesses e afinidades. O prazer é a dobrar...

Raul Fernando Gomes Branco disse...

Bonito, gostei!