Há uns bons tempos atrás, a minha amiga Madalena - dádiva dos deuses incas - falava-me de memórias ... de memórias familiares da sua
Adão Lobo, aldeia do termo da vila do Cadaval onde tem raízes e onde habita … ali … entre o mar e a
Serra de Montejunto, onde ainda
há uma semana iniciámos um desconfinamento caminheiro.
Das brumas do passado - assim como eu tenho memórias da "minha" Praia de Santa Cruz - a Madalena falava-me também da
Consolação … das memórias de infância … de idas à praia de bicicleta … das histórias e estórias do seu avô padre! Destas conversas - desta Amizade - acendeu-se-me rapidamente uma luz … uma espécie de néon que acendia e apagava: "De Adão Lobo à Consolação". No dia seguinte, tinha um esboço de percurso; sensivelmente 30 km; a coisa era perfeitamente "fazível" ... e apresentei o projecto à Madalena. "
Se quiseres ... esta é a tua caminhada ... a caminhada das tuas memórias"; o semblante iluminou-se-lhe ... mas disse-me logo:
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Adão-Lobo, 20.Maio.2020, 7h35 |
Esta não é a "minha" caminhada… 😒
É a de quem a percorrer… 😇
É sobre o tempo duma memória…
que já nem me "lembro" bem…
Apenas ficou a "história"
Duma infância que o tempo tem…
Esta será outra história
De uma outra folha da memória
Que o tempo há-de guardá-la também… 🥰
(Madalena Estácio Marques)
A Lucília, boa Amiga e companheira também de algumas "aventuras" - inclusive da
autonomia no Gerês vivida em Sonhos... - também alinhou. Às sete da manhã estávamos assim a deixar um carro na
Consolação ... e pouco mais de meia hora depois estávamos a partir do grande casarão em
Adão Lobo, recheado de memórias. Ali perto, a adega onde se fazia o vinho ... "
e tudo lá está como dantes ... e os tonéis do vinho ... altíssimos; ele da porta, quase sem balanço ... conseguia dum salto empoleirar-se lá p'ra cima" ... conta a Madalena sobre o seu avô padre ... atleta ... corredor de barreiras.
Dali ... da sua casa/memória ... todas as manhãs a Madalena vê nascer o Sol junto à "sua" Serra, a Serra de Montejunto que
há uma semana palmilhámos ... em manhã de nevoeiro e chuva mística.
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À saída de Adão-Lobo, 7h50 |
O que rezam as histórias sobre o topónimo
Adão-Lobo é que o Rei ia caçar para aquelas bandas, com a sua comitiva ... onde as damas também acompanhavam. Conta-se que, na altura, havia por ali muitos lobos ... e que uma dama, por certo assustada, terá gritado "
ai o lobo...ai o lobo...ai o lobo". Um pagem, de seu nome Adão, salvou então as damas das garras do lobo, indo em sua perseguição.
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Estávamos na zona de vinhas do Oeste e deixávamos a Serra de Montejunto para trás |
Rapidamente entrámos em zona de vinhas, enquanto a
Serra de Montejunto ficava para trás, envolta num capacete que lhe guardava os mistérios. Em
Famões cruzámos o
Rio Real, no seu curso entre a serra e a Lagoa de Óbidos, com o
Bombarral ligeiramente a norte. "
Aqui há um caminho onde dantes passávamos", dizia-me a Madalena a seguir ao rio; "
pois é por aí mesmo que vamos", respondi. Na medida do possível, claro que no estudo do percurso tinha procurado fugir o mais possível ao alcatrão.
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Pouco passa das oito da manhã, cruzamos o Rio Real logo a seguir a Famões ... |
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... e entramos no concelho do Bombarral, que deixamos a norte |
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O Caminho faz parte de nós ... e
nós fazemos parte do Caminho... |
Cruzada a linha do Oeste, o que é que me aparece num poste? Pois ... as setas azuis e amarelas! Decididamente, o Caminho faz parte de mim; trata-se do
Caminho do Mar, com origem no Estoril/Cascais e que segue pelos concelhos de Sintra, Mafra, Torres Vedras e Bombarral, rumo a Fátima ... e a Santiago de Compostela.
Cruzada também a A8, passámos a pequena aldeia de
Vale Covo. Os campos pareciam uma paleta de verdes, amarelos e lilazes, inspirando a Madalena a recitar a sua "deusa", Florbela Espanca:
Os meus males ninguém os adivinha…
A minha Dor não fala, anda sozinha…
E as folhas das memórias continuaram, através de "
uma ruralidade comovente, onde a amizade rola docemente ... decorre sem pressa a comer caminho, desde a infância a amadurecer como vinho..." ... nas palavras da Madalena.
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Belos campos multicolores, próximo do Casal da Misericórdia
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Através de "uma ruralidade comovente, onde a amizade rola docemente ... decorre sem pressa a comer caminho..." |
Vale Largo,
Casal dos Poisos ... e lá íamos comendo caminho. Pouco depois do meio dia estávamos em
S. Bartolomeu dos Galegos, com 18 km percorridos. Eram horas de almoço.
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S. Bartolomeu dos Galegos: Café ... e Junta de Freguesia |
Sentámo-nos no exterior do Café Central, frente à Junta de Freguesia ... e aí era eu quem tinha memórias...! Ao dono do Café, mostrei uma foto. "
Veja lá se conhece aí alguém"; e diz logo ele: "
Conheço, são ali da Junta ... e estão lá ". Pois é, há 5 anos, no meu
caminho desde Santa Cruz - que o destino não transformou em Caminho - a Junta de Freguesia foi o meu primeiro carimbo na Credencial daquele que seria o meu segundo Caminho de Santiago
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S. Bartolomeu dos Galegos,16.Abr.2015 ... 5 anos antes... |
... e a referida foto tirámo-la com as duas simpáticas funcionárias. Uma delas reconheceu-me! E claro que ambas se lembravam dos "3 mosqueteiros" que, há 5 anos, por ali tinham passado e pedido, pela primeira vez para elas, um carimbo de um Caminho de Santiago. Desta vez não tirámos foto, com pena; elas estavam de saída para almoço ... e nós completámos o nosso almoço ... e seguimos rumo noroeste, em direcção ao mar.
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Entre S. Bartolomeu dos Galegos e Bufarda. Geodésico da Ciranda (131m alt.) |
Nos campos próximos de
Camarnais, uma nespereira à beira do caminho estava convidativa ... e aquele que as minhas companheiras de jornada acharam um esbelto e jovem agricultor convidou-nos. "
Não querem umas nêsperas? Colham à vontade". Mas pouco depois de uma meia dúzia de nêsperas surgiu outro agricultor menos esbelto a vociferar ... "
Então ainda não chega?". Deduzimos que seriam ... filho e pai, respectivamente... 😜. Rapidamente prosseguimos caminho, rumo à
Bufarda.
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E pelas 13h30, do alto da Ciranda ... ao fundo já se via o mar. A Madalena estava ... entre a sua Serra e o seu Mar... |
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Moinhos do Alto da Foz, próximo de Bufarda |
Como a Madalena havia de dizer mais tarde, nós estávamos ...
Nos braços d'aventura
Desde a infância da ternura
Desta Serra até ao mar
Com tais amigos se perdura
Sem pressa e vontade de durar...
O destino era agora
S. Bernardino ... onde chegaríamos ao mar. E entretanto tinha-se já iluminado nas nossas mentes um outro néon: e porque não, numa próxima etapa ... fazer Consolação - Santa Cruz? Mais ou menos a mesma distância, talvez um pouco mais desnível, mas principalmente uma ligação entre memórias ... e não só! Um dia ... qualquer dia...
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Casais do Júlio e S. Bernardino, com a Consolação ao fundo ... e Peniche ... e as Berlengas |
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Praia de S. Bernardino, 14h50. Faltava pouco ... e agora sempre rente ao mar! |
Em
S. Bernardino ... também a Lucília tinha e tem memórias ... e também eu lhes falei dos meus 15, 16, 17 anos, quando, a partir de Santa Cruz ... também eu calcorreava esta costa ... de bicicleta ... e até de motorizada, numa Derbi alugada ao velho e histórico Sr. Filipe. E a Madalena contava-nos que também ela andava de bicicleta, falésias fora ... mas esquecia-se que a bicicleta tinha travões...; "
livre como eu...uma selvagenzinha...perfeita selvagem...🤩" ... palavras dela... 😊
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Praia de S. Bernardino, com as suas
insólitas formações rochosas ...
... e rumamos a norte!
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Trago o destino das águas
No aguardar dos rochedos
Dizem que o tempo é que apaga as mágoas
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Acompanhando agora as arribas litorais, agradou-nos ver a "famosa"
Casa do Gato Cinzento recuperada. Qualquer de nós três já por ali passara outras vezes, testemunhando a degradação de uma quinta e uma mansão que terá pertencido a Loretta Young e que sempre esteve
envolta em mistérios; existem testemunhos, entre outros ... de um cão fantasma que guarda permanentemente o portão...
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Quinta do Gato Cinzento, entre S. Bernardino e Consolação. Que mistérios encerra esta propriedade?... |
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S. Bernardino ficou para trás ... e lá ao fundo ... muito ao fundo ... está Santa Cruz |
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Enquanto que, virados a norte ... temos já a Consolação à vista ... e as Berlengas |
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Mas o Mar ... o Mar continua a não ser de ninguém... |
Antes das três e meia estávamos no
Porto Batel ... mais um local de memórias da nossa "Mada". Como que numa catarse ... ou num êxtase contemplativo ... a Madalena sentou-se sem palavras sobre as arribas ... talvez olhando o Tempo ... talvez vendo a Alma do seu Mar sem fim...
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Porto Batel ... e um olhar que se perde num Mar sem fim ... numa viagem astral ... num continuum espaço-tempo...
"Todos os anos no nosso Verão de crianças e adolescentes ... apareciam golfinhos mais ao largo ... em bandos que se avistavam da praia..." |
Mais vinte minutos e estávamos na
Consolação, com 30 km percorridos. Virada a sul, a praia vulgo "do rabo-ao-léu" tem de há muito propriedades curativas. O Padre Tomás Gabriel Ribeiro - o avô padre da nossa "Mada", sacerdote depois de enviuvar - foi o impulsionador das benfeitorias do clima/atmosfera específicos daquela praia e das suas rochas, dada a exposição ao Sol, o calor húmido e o iodo acumulado nas algas. Muita gente melhorou autenticamente ... e daí começou a sua fama.
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A chegar à Consolação; ao fundo, a Fortaleza e a Praia Sul, rochosa e medicinal ... a praia do "rabo-ao-léu" |
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Capela de Nossa Senhora da Consolação |
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Frente à Capela, o Cruzeiro e a Fortaleza da Consolação. Tínhamos cumprido o objectivo. |
Reza a lenda que um náufrago conseguiu-se salvar de grande tempestade. Naquele mar e naquelas rochas, deu à costa vivo e, em agradecimento, mandou erigir a Capela à
Nossa Senhora da Consolação ... uma Senhora de longos cabelos pretos a caírem sobre as vestes. Séculos mais tarde, na Igreja do Cadaval ... o Padre Tomás Gabriel Ribeiro (o avô padre) casou duas filhas ... no mesmo dia ... e juntas entraram pela álea do portão pequeno da casa de
Adão-Lobo, onde foi dado o copo de água ... a que assistiu toda a aldeia. Na mesma capela quiçá baptizou também alguns netos.
"O meu avô metia a criançada toda a fazer ginástica...e levava-os para o "medão grande"...ele no meio ...rapazes dum lado e meninas do outro...banhos de sol ao "natural"...
Ele ia a nado da Consolação a Peniche com o filho mais velho...quando se cansava o filho...ia às costas do pai...
Num dia de temporal...em que nem os marinheiros iam ao mar...ele no seu batel "Arcanjo Gabriel"...apesar dos protestos de todos...foi à Berlenga, de Peniche...e voltou..."
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Ponta da Consolação e Praia Norte - a "praia dos tubos". Ao fundo, Peniche, o Cabo Carvoeiro e a Berlenga |
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Um pouco desfocados ... mas a alegria estampada
em três rostos de uma equipa a brindar à Vida! |
Tínhamos cumprido o nosso objectivo. Em 30 km da tal amizade que rola docemente e sem pressa, ligámos pontas de memórias ... folhas guardadas no tempo. Dali até Peniche seria um salto...
"Adolescentes ... vagueávamos pela praia e íamo-nos pelo areal até às bandas de Peniche ... a cantar ... e ...
estavam os pescadores a puxar os barcos e a arrastar as redes ... todos nos púnhamos a ajudar...
No outro dia ... era um fartote de peixe p'almoçar..."
Muito mais histórias e estórias a Madalena contou ... e muitas mais teria para contar ... mas este dia cheio aproximava-se do fim. No carro que ali ficara regressámos a
Adão-Lobo ... à casa onde tínhamos começado
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Adão-Lobo, cerca de 1996 - A Madalena inaugura o busto
do Padre Tomás Gabriel Ribeiro ... seu avô e padrinho |
... à casa onde, ao lado da adega ... há um canto onde esteve e está (embora agora cheio de erva alta e algo vandalizado) ... um busto do avô padre ... em agradecimento das pessoas que salvou da pneumónica. Na festa de inauguração do busto, a Madalena ... foi quem descerrou a bandeira que o tapava. Algures numa outra dimensão, o Padre Tomás Gabriel Ribeiro seguramente se orgulhará desta sua neta e afilhada ... que um dia o Universo, através dos deuses incas ... cruzou na minha Vida. Outras coincidências ... sinais ... memórias ... contarei numa das próximas "aventuras"...
2 comentários:
Tão bom encontrar companheiros que partilhem os mesmos interesses e afinidades. O prazer é a dobrar...
Bonito, gostei!
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