Caminhar a solo não é pior nem melhor do que acompanhado ... é diferente. Nunca se está aliás sozinho. Estamos acompanhados por nós próprios, numa ligação diferente aos elementos que nos rodeiam, sentindo-os de modo diferente, vivendo-os de modo diferente. A última vez que fiz mais de um dia a solo foi em Janeiro de 2013, na
Serra de Béjar e nos confins da Serra da Gata. Já tinha saudades...
J. Caminhar a solo é, de certo modo, uma introspecção, uma catarse purificadora.
Parafraseando uma vez mais o meu grande amigo António Mousinho, nestas "aventuras" a solo eu sinto-me o "
monge dos espaços abertos", em isolamento integral, pelos claustros das serras e dos vales...
La Alberca e a Serra da Peña de Francia ... nos Camiños de Santiago
Quarta feira, antes de o Sol nascer, estava assim próximo de
La Alberca, a povoação mais emblemática da
Sierra de Francia, sede do
Parque Natural Las Batuecas - Sierra de Francia. Ainda com os filhos a acompanhar-nos, a única vez que por ali tinha andado foi há 20 longos anos, em Julho de 1994 ... mas de carro. A minha "missão", agora, era a descoberta dos caminhos da serra ... pelo que o carro ficou portanto na "base", junto à Casa do Parque Natural, em Alberca. A "aventura" ia começar pelo percurso do
GR10, percurso de grande rota que une as terras de Béjar à
Peña de Francia.
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Cores de Outono na Sierra de Francia
Ú E lá está o cume da Peña de Francia Ù
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A subida desde
La Alberca ao cume da
Peña de Francia não é propriamente fácil. Depois de cruzar o
Rio Francia, sensivelmente a 1000 metros de altitude, o trilho sobe em zigzags até aos 1723 metros daquele emblemático cume, cruzando por três vezes a estrada que lhe dá acesso.
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Rio Francia |
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É para ali que eu vou... |
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A subida é dura ... mas cheia de cor e imponência |
A primeira descoberta desta "aventura" veio logo nesta dura subida: a
Peña de Francia ... também é
Caminho de Santiago!
Uma variante da
Vía de La Plata, ou do Caminho de Torres, passa pelo Santuário Mariano da
Peña de Francia, estando actualmente muito bem sinalizado. O troço final, no cume, acompanha aliás a Via Sacra de acesso ao Santuário.
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Via Sacra da Peña de Francia ... Camiño de Santiago! |
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Santuário Mariano no cume da Penha de Francia, 1723 metros de altitude |
Curiosamente, é na Paris Medieval que encontramos a origem do Santuário. A Virgem Maria terá aparecido a um jovem estudante, de nome Simon Vela, dizendo-lhe para percorrer o mundo em busca de uma imagem sua, que estaria numa penha.
Cinco anos depois, em 1434, o jovem encontrou a imagem numa gruta, no cimo de uma montanha a sul de Salamanca: uma
Virgem Negra, com um menino ao colo igualmente negro, vestida com um manto branco imaculado.
Resolveu então erguer aí uma pequena cabana onde entronizou a Virgem, que passou a ser adorada pelas pessoas das redondezas.
Surgia assim, a 1723 metros de altitude, na
Peña de Francia, o mais elevado santuário mariano do mundo!
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Diversas imagens da Virgem
(à direita,
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Negra da Peña de Francia
a imagem do altar mor do Santuário)
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E porquê "
de Francia"? Quatro séculos antes de Simon Vela, entre os repovoadores da região, reconquistada aos mouros, figurava uma colónia francesa, que ali deixou apelidos e topónimos. O nome da aldeia próxima de
San Martín del Castañar é, aliás, uma homenagem a San Martin de Tours.
E o que tem a ver a
Peña de Francia com a
Penha de França lisboeta? Após a batalha de Alcácer-Quibir, o português António Simões, escultor de profissão e um dos prisioneiros escravizados pelos árabes, prometeu à Virgem que, caso conseguisse chegar à pátria, lhe faria sete imagens. Tal aconteceu e ele cumpriu a sua promessa: chegado a Lisboa, esculpiu as sete imagens ... mas quando chegou à sétima não sabia que invocação haveria de esculpir. Um padre jesuíta aconselhou-lhe então a imagem de Nossa Senhora da
Peña de Francia, cujos milagres eram muito falados em Castela.
Mais tarde, em 1597, construiu-se uma capela para essa imagem em Lisboa, no local que ficou até hoje conhecido como Penha de França. Muitos milagres atribuídos a Nossa Senhora da Penha de França são conhecidos em Lisboa.
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Panorâmica do cume da Peña de Francia para sudoeste |
Do cimo da
Peña de Francia desci para o
Paso de los Lobos, cruzando pela última vez a estrada de acesso ao cume. O
Paso de los Lobos é uma divisória natural de águas, entre as bacias do Douro, a norte, e do Tejo, a sul. Dali, para sudoeste, corre o
Rio Agadón, seguindo também um trilho de montanha rumo à aldeia de
Monsagro. Mas eu iria regressar a
Alberca por um percurso circular sobranceiro ao vale do
Rio Batuecas. Pouco abaixo do
Paso de los Lobos, contudo, o trilho assinalado nas cartas ... não estava lá. O pequeno troço a corta mato não foi felizmente longo, até ao estradão que depois bordeja o
Arroyo de la Talla.
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Vale do Arroyo de la Talla ... |
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... e formações xistosas |
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sobranceiras ao vale |
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Los Puertitos, entre as bacias do Arroyo de la Talla (à esquerda) e do Rio Batuecas (para lá do puerto) |
A partir de
Los Puertitos, em princípio seria possível contornar a cabeceira do
Rio Batuecas e descer ao respectivo vale, juntando portanto os dois percursos que me propus palmilhar nestes dois dias. Mas, para regressar a Alberca, a jornada iria parar a perto de 40 quilómetros de dura caminhada de montanha. Noutra época do ano, de noites menos frias ... teria pensado eventualmente numa autonomia, com pernoita algures naquelas paragens paradisíacas.
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O vale de Batuecas, visto de Los Puertitos |
A partir de
Los Puertitos, optei assim por seguir o mais possível a cumeada sobranceira ao vale que iria percorrer no dia seguinte, em vez da continuação no estradão virado a norte. E não me arrependi da opção tomada ... apesar de diversas vezes me ter interrogado sobre se teria ou não de voltar atrás. As imagens abaixo podem ser impressionantes ... como o foi a fabulosa travessia daquele pequeno troço de cerca de 2 km, até ao
Alto de Leras ... que demorei quase hora e meia a percorrer!
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O impressionante Risco Gordo, sobre o vale de Batuecas |
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Vestígios da antiga exploração carbonífera |
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Não parece? Mas foi mesmo por estes "caminhos" que eu vim, debruçado sobre o vale de Las Batuecas...! |
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Surpreendo as camurças... |
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Ao fim de hora e meia ... estou à vista da Peña Carbonera |
Retomei o estradão pouco abaixo do referido
Alto de Leras, com os olhos cheios da impressionante passagem que acabara de transpor. Deixando o vale de
Batuecas para o dia seguinte, rumei à última penha do dia,
Peña Carbonera, topónimo a assinalar a antiga actividade de extracção carbonífera.
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Refúgio de Peña Carbonera ... com a Peña de Francia ao fundo |
Com 22 km percorridos, regressei a Alberca maioritariamente por estradão, passando a nordeste da
Peña del Huevo, assim chamada devido à sua configuração. Depois ... a vila de
La Alberca mereceu bem a visita. La Alberca é um portento de arquitectura tradicional, fazendo-nos recuar no tempo, na história, nas tradições, na cultura popular.
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La Alberca ... um portento |
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de arquitectura popular! |
Para o merecido descanso entre as duas "aventuras", havia previamente reservado dormida na
Casa "Las Madras", na simpática povoação de
Villanueva del Conde. Escolhido essencialmente pela muito boa relação qualidade/preço, "
Las Madras" revelou-se-me uma óptima base para futuras incursões. Simpatia, decoração, qualidade, bom gosto, foram características que ali encontrei ... para além de um bom jantar...
J
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Casa "Las Madras", Villanueva del Conde |
Ao longo do fabuloso vale de Batuecas
Sem hipótese de um percurso circular, a "descoberta" do vale de
Las Batuecas tinha sempre de ser feita nos dois sentidos ... embora fique no imaginário a possibilidade de ligação entre os dois percursos efectuados nestes dois dias, como referido mais acima.
Antes das nove da manhã espanholas, estava portanto a deixar "
Las Madras", passando de novo por La Alberca, rumo ao
Puerto del Portillo, a partir do qual iria descer sensivelmente 600 metros em altitude, para o fabuloso vale do
Rio Batuecas. Do miradouro, no
Puerto del Portillo, a panorâmica era soberba, no despertar de uma manhã em que os abutres pairavam sobre os montes e vales virados a sul. Pouco depois estava no vale, preparado para iniciar a segunda jornada desta primeira incursão pedestre no
Parque Natural Las Batuecas - Sierra de Francia.
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Panorâmica do Puerto del Portillo para sul, com os
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abutres a pairarem sobre o despertar dos vales
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O vale de
Las Batuecas já foi descrito como uma representação do paraíso. E realmente, se existem paraísos ... ali é um deles! Do cantar das águas do rio, sempre presente, ao colorido da densa vegetação (onde me espantou a enorme quantidade de medronheiros), à imponência dos enormes paredões rochosos, que em muitos locais ladeiam o vale, ao testemunho da ocupação humana desde tempos imemoriais e materializada em pinturas rupestres ... tudo naquele vale subjuga e convida à meditação.
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Ponte sobre o Rio Batuecas, à entrada do vale |
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Começo a ver (e a comer...J) medronheiros |
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ao longo de todo o vale! |
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Convento e Mosteiro de San José de Batuecas, ou do "Deserto Carmelitano" |
As características do vale, propícias à vida retirada e eremítica, levou à construção do
Convento do "Deserto Carmelitano", nos finais do séc. XVI. Destruído por um incêndio na primeira metade do séc. XIX, foi restaurado em 1950 e entregue aos Padres Carmelitas Descalços. Do trilho que percorre o vale, apenas se vêem os espessos e altos muros do Convento, que contudo dispõe de uma
Hospedaria, destinada a todas as pessoas que desejem participar do ambiente contemplativo do Mosteiro.
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Teixo do Convento
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(Taxus baccata)
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Acompanhando sempre o rio e ao longo do denso bosque, chega-se às pinturas rupestres do
Canchal de Las Cabras Pintadas. Datadas de entre o Neolítico e o Calcolítico (5000-2500 a.C.), as pinturas têm um marcado conteúdo simbólico e uma tendência para a esquematização de cenas de caça e de pastoreio.
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Canchal das cabras pintadas |
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Formações rochosas a desafiar a imaginação... |
Mas é a noroeste das cabras pintadas e do
Canchal de Zarzalon que a imponência do vale mais se acentua, principalmente na zona de
Las Catedrales, enormes e imponentes paredões de rocha ... quase 700 metros abaixo da também imponente travessia do
Risco Gordo. Medronheiros, castanheiros e azevinheiros convivem no bosque, à medida que o rio recebe as águas de ambas as margens.
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Las Catedrales, onde o vale se aperta entre os paredões rochosos, de onde sai vegetação como que por milagre |
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Mais |
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medronheiro ... |
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Mas também |
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azevinheiro |
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Ontem andei ali por cima... |
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Cores do vale... |
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A caminho da cascata de El Chorro |
Cruzado o
Rio Batuecas (que nasce pouco abaixo de
Los Puertitos, onde havia passado no dia anterior), continua-se a subir o vale, bordejando agora o seu afluente
El Chorro, nome derivado da espectacular cascata em que o mesmo se precipita e que culmina o trilho sinalizado pelo Parque Natural. Dali para cima ... ficou-me a já referida sensação de que deve ser possível continuar para o
Puerto de Monsagro e
Los Puertitos, possibilitando assim caminhadas de travessia...
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E aí está ela imponente: Cascata de El Chorro, objectivo final desta caminhada pelo vale de Batuecas |
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Perspectivas diferentes da |
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espectacular Cascata de El Chorro |
O trilho até à cascata de
El Chorro, não sendo propriamente fácil, também não oferece dificuldades especiais e não chega aos 5 km desde o início. A contemplação dos muitos paraísos dentro daquele paraíso, as muitas fotografias, o escutar os sons e admirar as cores do bosque, tudo contribuiu contudo a que tivesse levado 3 horas até lá! Para baixo ... levei 50 minutos...
J!
Mesmo assim, em "velocidade de cruzeiro", deu para ver que as cores já eram outras, a iluminação não era a mesma. A Natureza nunca se repete; tudo muda.
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E assim me despeço do vale encantado de Las Batuecas |
Regressado aos muros do Convento e ao ponto inicial ... restava-me o regresso a Vale de Espinho, de onde me separavam pouco mais de 100 km ... e onde me esperava a minha "pequena arraiana", que umas vezes me acompanha nas "aventuras", outras vezes prefere o aconchego de um "retiro"...
J!
Estes dois dias em terras do vale de
Batuecas e da
Sierra de Francia foram seguramente inspiradores para novas incursões. Se já antes tinha lido sobre a zona, soube agora bastante mais acerca da existência de muitos mais percursos pedestres, alguns até bem simples, naquele refúgio natural do sudoeste de Castela, paredes meias com a
Extremadura e com a "minha"
Sierra de Gata. No regresso, aliás, passei como sempre junto ao
Xalmas ... o meu deus vetão ... o ponto mais alto do ocidente da Serra da Gata ... e de toda a zona envolvente de
Vale de Espinho, de ambos os lados da raia.
A Natureza efectivamente nunca se repete; tudo muda. Algo acontece sempre em qualquer lugar, em qualquer espaço. Só abre os olhos quem está vivo e atento à Natureza que nos rodeia, à luz que nasce ou que se vai, à sombra de uma folha, ao rio que não pára...! Nada é igual a ontem ... nada será igual amanhã...
2 comentários:
Callixto, se filmaste esta caminhada sugiro que o apresentes ao
programa de TV "Survivor"
Já estive em Alberta, e penso ir à Serra da Peña de França, mas com as comodidades dos "tempos modernos"
Aventuras destas, só o Callixto e o tipo do Survivor.
Adorei a reportagem!
Um abraço.
Raul
Mais uma grande aventura caro amigo... gostei muito de ler a tua descrição, ver as fotografias ....tens sempre lugares novos para descobrir e partilhar.....um grande abraço
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