quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Malcata - à (re)descoberta de uma Serra Solitária...

No passado domingo, a SIC emitiu o excelente documentário “Malcata – Conto de Uma Serra Solitária”, da autoria de Miguel Cortes Costa e Ricardo Guerreiro. Coordenado pela Câmara Municipal de Penamacor,
Junto à Ribeira da Meimoa, 28.01.2021, 8h20
o filme conquistou o Prémio da Juventude Série e Reportagem Televisiva no Festival Internacional de Cinema Ambiental CineEco 2020.
Há quase meio século ligado à Raia e apesar de já ter atravessado a Malcata a pé em diversos sentidos ... o filme falava-me de zonas que não conhecia. Aquele excelente documentário falava-me de minas romanas ... da exploração do ouro ... da captura do Rio Bazágueda ... e de tanto mais. E logo nasceu um projecto de caminhada ... que a infeliz nuvem negra que assola o Mundo permitia concretizar a solo ... em confinamento total ... só eu e a Natureza! O ponto de partida foi junto à ponte que cruza a Ribeira da Meimoa, a sul da aldeia de Meimão, junto à conduta que recebe o transvase da barragem do Sabugal.
Junto à Barragem da Meimoa (nome da ribeira) ... ou do Meimão (aldeia em cuja área está inserida)
Eram 8h15 quando comecei a andar. Em Vale de Espinho estava Sol, mas ali estava um nevoeiro que pensei, inicialmente, que fosse apenas matinal e por efeito da barragem ... mas que me acompanhou toda a jornada. Mas ... o nevoeiro faz parte da Natureza ... e empresta à paisagem e aos elementos naturais o mistério e o misticismo ... que propiciam a catarse. Já a subir a encosta sul da barragem ... três corços atravessaram à minha frente, mais rápidos do que qualquer movimento para os fotografar.

Maravilhas e mistérios dos universos naturais...
Subida para as colinas a sul da Barragem da Meimoa, onde termina a antiga estrada Penamacor - Meimão
A partir do fim da antiga estrada ... continuei a subir. Em pouco mais de uma hora subi quase 300 metros de desnível, rumo a sudoeste. Uns laivos de céu azul pareciam querer dar passagem ao Sol,
Muitos pinheiros caídos, no trilho que desce
para a Barroca do Ouro
mas rapidamente a nuvem húmida e espessa voltou. Ligeiramente a sul do geodésico do Sobreiral, estava a 857 metros de altitude; tinha começado a 570. E agora sim ia voltar a descer, rumo ao vale da Barroca do Ouro. O nome diz tudo; tal como ilustrado no documentário da SIC, os romanos e não só por ali andaram em explorações auríferas ... e as águas que escorriam no trilho, mesmo antes de atingida a ribeira, pareciam ilustrar a riqueza daquelas terras, uma parte da Malcata que me era ainda desconhecida!
No trilho para a Barroca do Ouro ... estarei a pisar ouro?
A cor, pelo menos ... é a do ouro...
No sítio da Arrancada, junto à Barroca do Ouro, velhas ruínas atestam a ocupação humana nestas paragens.
Sobre uma porta ainda se lê uma data ... 1878
Barroca do Ouro, próximo da Arrancada e do vale abandonado do Rio Bazágueda
Um vale abandonado? Que é isso? A captura fluvial é um fenómeno hidrográfico em que a erosão remontante de um rio abre uma brecha no leito de outro rio, capturando as suas águas. O processo de captura fluvial pode ser devido a movimentos tectónicos ao longo de falhas; tem lugar em períodos de tempo curtos no contexto geológico, da ordem de dezenas ou centenas de milhares de anos. O rio Bazágueda é um dos exemplos mais marcantes de captura fluvial em Portugal. O recuo da cabeceira de um afluente do rio Erges (para o qual actualmente corre o Bazágueda) levou à captura do troço superior do rio e de outras ribeiras da margem direita (por exemplo, as ribeiras do Salgueirinho
e da Bazaguedinha), que drenavam anteriormente para a bacia do Zêzere através da ribeira da Meimoa. Já há mais de meio século que o incansável Orlando Ribeiro tinha analisado a admirável inversão de direcção do rio Bazágueda, reconstituindo a evolução da captura a partir do percurso primitivo do rio e apresentando aquele que seria o seu vale inicial, o estado actual na evolução da rede de drenagem e propondo até uma previsão do desenvolvimento da respectiva bacia hidrográfica, como ilustram os seus esquemas, à direita.
A antiga Carreira de Tiro da Meimoa, actualmente pertencente à Força Aérea, situa-se no vale abandonado pelo Bazágueda.
Esquema de evolução da
captura do rio Bazágueda
(O. Ribeiro, 1951, pg.16)
Foi para lá que me dirigi. Na carreira de tiro já tinha passado diversas vezes, inclusive quando da minha épica travessia da Malcata à Gardunha, há quase 9 anos. Mas, nessa altura ... nunca tinha ouvido falar na inversão de rumo do Bazágueda ... nem nas minas de ouro romanas próximas da carreira de tiro. O Inventário de Geossítios e Património Geológico de Penamacor, da Associação de Estudos do Alto Tejo, relata muito claramente esta singular história geológica daquelas terras, que remonta há cerca de 600 milhões de anos e que hoje pode ser lida nas rochas, nos vales, nas galerias abandonadas e nas escombreiras de minas. O Complexo Mineiro Romano da Presa (pg. 17) é "um exemplo notável de um processo histórico onde se desenvolveu a atividade mineira romana para extrair ouro no nordeste da província romana “Hispania Ulterior Lusitania”". No concelho de Penamacor, a exploração mineira remonta aliás ao período pré-romano, tendo prosseguido no período medieval e nos séculos XIX e XX.
Próximo da antiga Carreira de Tiro da Meimoa e do Complexo Mineiro Romando da Preza, 11h15
As minas da Preza situam-se ao lado da antiga carreira de tiro. Muito próximo situam-se também as galerias do Covão do Urso, no profundo vale da Ribeira de Valdedra.
Covão do Urso, no profundo vale da Ribeira de Valdedra, 11h40

Ribeira
de Valdedra
E do alto das colinas da Figueirinha ... já vejo o vale do Bazágueda, 12h30
Entre o vale abandonado e o actual vale do Bazágueda, a sudeste, a ligação mais curta é a que seguiu a ribeira do Bazaguedinha ... mas que corre num apertado vale onde não há trilhos. Por isso ... houve que subir quase ao geodésico da Figueirinha (607 metros de altitude), para depois descer então ao vale do Bazágueda, ao paradisíaco local do Casal do Rato e do Moinho do Pinheiro. Ao contrário da maior parte do percurso que me propus, este era local já conhecido ... o que não sabia era que este é precisamente o ponto em que o rio inflectiu para sul, rumo ao Erges, quebrando a sua direcção NE/SW.

Ribeira da Bazaguedinha e sítio do Casal do Rato. Na terceira foto, foz da ribeira no rio Bazágueda
A partir do Casal do Rato, acompanhei o curso do Bazágueda; já conhecia o trilho, já ali aliás guiei diversos grupos de amigos camiheiros. E junto ao Moinho do Pinheiro e à açude ... claro que me vieram à memória as recordações da ti MariZé Salgueiro, ao tempo a única habitante da Reserva da Malcata, que conheci em Abril de 2006 e que várias vezes visitei. Viúva, ali viveu sozinha com as suas cabras e cães, fazendo deliciosos queijos de pura cabra. Era o exemplo vivo de uma gente simples, que dorme em paz e sem sonhos ... por quem Freud jamais teria existido e inventado a psicanálise!

O Bazágueda, entre o Casal do Rato e o Moinho do Pinheiro. Aqui viveu, sozinha, a ti MariZé Salgueiro
Vídeo produzido em 2012, em Tributo à ti MariZé Salgueiro
Deixei as memórias da ti MariZé ... mergulhei-as nas águas revoltas, na açude que antecede os velhos Moinhos do Bazágueda. E junto à foz da Ribeira da Mouca ... voltei a trilhos virgens para mim.

Açude no Bazágueda, entre o Moinho do Pinheiro e o Moinho Cimeiro
Ribeiro da Mouca, afluente do Bazágueda, 13h10; a partir de aqui ... era subir a bom subir!
Em vez de subir para as Revoltas, de onde já desci várias vezes, subi para as alturas do Poio, nas encostas a leste da ribeira do mesmo nome. Iniciava assim o regresso, entre os vales da Mouca e do Poio, para depois descer para a ribeira do Salgueirinho, sempre rumo a norte.
Vale da Ribeira da Mouca, visto de entre este e o do Poio, 13h15
À direita, Ribeira do Salgueirinho, 14h05
Cruzada a ribeira do Salgueirinho, tenho à minha esquerda (ou seja a SW) o prenúncio do vale abandonado do Bazágueda
Pouco depois das duas da tarde estava à vista do vale largo para onde correm as ribeiras do Salgueirinho e de Valdedra, prenúncio já, de novo, do vale abandonado pela captura do Bazágueda. Depois ... depois foi subir, gradualmente, o vale da ribeira de Valdedra, pela encosta na respectiva margem esquerda. Foi, talvez, a parte mais monótona da caminhada, cerca de 4 km sempre "iguais", por vezes com o nevoeiro mais denso a esconder o vale. Mas às três da tarde estava no ponto mais próximo do percurso matinal, não muito distante do já citado fim da antiga estrada Penamacor - Meimão ... e meia hora depois estava à vista da barragem da ribeira da Meimoa.
15h30 - À vista da Barragem da Meimoa ...
O vale da Ribeira da Meimoa, visto ainda do alto de que faltava descer para o ponto de origem
Clica no mapa para ampliar ou aqui para ver no Wikiloc
Dez minutos antes das quatro da tarde estava de regresso ao ponto onde havia iniciado, com sensivelmente 30 km nos pés. Em Vale de Espinho tinha estado Sol todo o dia ... eu tive nevoeiro ... mas tive uma jornada fabulosa, maioritariamente por trilhos e por terras que, embora na "minha" Malcata ... ainda não conhecia. Baseada no documentário da SIC, foi uma jornada solitária ... à (re)descoberta de uma Serra Solitária. Os únicos seres vivos que vi foram aves ... e os três corços que se atravessaram no caminho. Confinamento melhor do que este ... é difícil.
Clica para ver o álbum completo
Esta caminhada foi feita a solo, como tantas outras que sempre fiz. Não facilites a "vida" ao vírus: a não ser a solo ou com o teu agregado ... FICA EM CASA ... Pela tua saúde e a dos outros!

4 comentários:

mosca disse...

Exuberante descrição de um dia bem passado por sítios onde, um dia, tenciono caminhar contigo (se tiveres paciência para esperar por mim kk).
Abraço Amigo

Aquiles Pinto disse...

Obrigado pela descrição. Eu conhecia uma descrição do Lopes Marcelo, que foi meu colega de Liceu e de Faculdade. Quanto tempo demoraste no percurso de 30 Km? Um abraço

José Carlos Callixto disse...

Quase 8 horas, Aquiles, com troços mais lentos e outros mais rápidos, entre as 8h e pouco e as 16h. Um abraço.

Edite disse...

Obrigada pela partilha.Beijinhos